Autor: Susete Rodrigues
João Cabral, ator, encenador e professor, nasceu em Ponta Delgada em 1961 e até aos 9 anos viveu em São Miguel. Destes tempos, tem as melhores recordações. Diz-nos que teve uma infância muito privilegiada: “viver aí na infância, com esse contacto fantástico com a natureza, com o mar dos Açores, foi algo extraordinário. Mas não só o mar, com a beleza natural que São Miguel tem”. Um privilegiado também porque “tive a sorte de viver numa casa que ficava muito perto do atual Pesqueiro - na altura era a piscina de São Pedro - onde passava a vida, também na praia do Pópulo; tínhamos um jardim grande, era tudo muito agradável. Guardo desse tempo de infância, essa liberdade total”, conta-nos com alguma timidez e risos, explicando que “não tenho jeito nenhum para isto”, ou seja, falar de si e não apenas do seu trabalho.
“Viemos todos para Lisboa em 1971, tinha nove anos na altura. Foi um choque, uma cidade muito grande, passar de uma casa grande para um apartamento. Foram mudanças que mexeram comigo”, afirmou. Uma adaptação difícil para quem vem de um meio onde “toda a gente se conhece. Há uma sensação de conforto nessas relações. Em Lisboa éramos mais uns que estávamos aqui. E o que mais me fez falta foi o mar, esse mar fantástico que temos nos Açores”. Contudo, “tive a sorte de ir viver para a Estrela e o jardim que tinha aí (São Miguel) foi substituído pelo Jardim da Estrela. Era um jardim onde passava muito tempo”. Como estudou no liceu Pedro Nunes, conta-nos que todos os dias atravessava o Jardim da Estrela, “lembro-me de quando não estava na escola, estava no Jardim da Estrela”.
João Cabral refere que o gosto pelas artes, surgiu desde muito cedo. “Em minha casa havia muitas festas e fazia-se sempre uns teatros. O meu pai gostava muito de teatro, tinha muito jeito para declamar poesia e estava sempre a brincar com personagens. Depois, a minha irmã - que é cineasta - estava na escola de cinema. Ela é um pouco mais velha que eu - e desde muito cedo começámos a ir aos festivais de cinema da Figueira da Foz, aos ciclos de cinema da Gulbenkian e da Cinemateca”, explicou para acrescentar que “foi uma coisa que veio entrando naturalmente, essa vontade, essa apetência”.
Aquando da ida para a universidade, João Cabral escolheu Medicina, mas “acabei por não ter média para entrar e, ao mesmo tempo, fiz um exame de admissão ao Conservatório Nacional de Lisboa, e para a minha surpresa, entrei”. Recorda que o primeiro ano “foi um bocadinho à experiência, mas depois... aquilo é um bocadinho como um vírus que se instala e depois já foi impossível voltar atrás”.
A primeira vez que pisou um palco foi no Teatro São Carlos, a “fazer figuração na ópera ‘Carmen’. O Carlos Avilez - ator e encenador, já falecido - tinha um contacto privilegiado com a Águeda Sena, que era a minha professora de Interpretação no Conservatório, e ele estava a encenar a ‘Carmen’. E, portanto, a minha turma do primeiro ano foi toda fazer figuração para a Carmen”. Adianta que foi uma experiência fantástica, por exemplo, “uma das cantoras que fez a Carmen era fabulosa, principalmente em termos teatrais. Apesar de nós estarmos ali só a fazer figuração, ela metia-se connosco, ela utilizava-nos para a sua personagem. Isso foi bastante interessante”. Depois, “fui convidado para fazer uma peça no Teatro Dona Maria. Ao mesmo tempo, estava na escola de teatro, no Conservatório e também na escola de cinema. Fui sempre fazendo muitas colaborações. Sempre gostando muito desses dois meios, tanto do teatro como do cinema e finalmente chamaram-me para fazer uma novela para a televisão”.
Conta que a sua primeira experiência na televisão foi “um bocadinho assustadora”, porque “tanto o teatro como o cinema, reflete-se mais sobre o que é que se está a fazer, tem-se mais tempo de preparação e, de repente, estava num sítio em que tinha que fazer vinte e tal cenas, trinta cenas por dia e não havia propriamente tempo”, frisando que “isso assustou-me um bocadinho, mas ao mesmo tempo aprendi a gostar de fazer televisão, por esse desafio tão grande que é, ou seja, há uma velocidade muito grande, o que nos traz uma urgência muito grande de como fazer aquelas cenas, não há outras maneiras de as fazer e temos de ser muito rápidos”. (…) Confessa que no início “tinha uma espécie de desilusão quase diária, havia sempre uma sensação de que aquilo não tinha ficado bem. Para quem gosta que as coisas saiam realmente bem, isto não era muito agradável”, acrescentando que as “pessoas mais velhas diziam-me: ‘se chegares a casa com a sensação de que houve uma cena que gostaste de fazer, isto é maravilhoso, agarra-te a ela e dorme com ela”, disse com boa disposição.
De facto, João Cabral foi percebendo que não podia ser tão exigente consigo próprio quando “tudo dependia de uma máquina de produção ‘muito agressiva’”. Mas “gosto de fazer televisão, aprendi a gostar, por essa rapidez e essa velocidade que se tem que imprimir nas decisões e nas escolhas que temos de fazer a cada momento”.
João Cabral contracenou e partilhou o palco com atores de renome em Portugal - muitos já não estão entre nós - tais como Eunice Munoz, Isabel Castro, Canto e Castro; experiências que disse terem sido fantásticas porque “eles tinham um saber da experiência feita, que é o que me parece mais importante em todas estas atividades de representação”. No caso da Eunice Munoz “era um ser humano fantástico, não só pela exigência que tinha no seu trabalho, mas pela modernidade. Vemos filmes dos anos 50, 60, e enquanto que os outros atores estão a representar de uma forma antiquada, vemos a Eunice de uma forma extremamente moderna, fresca, a apresentar-se. Foi um prazer ter contracenado com ela na ‘Banqueira do Povo’ (telenovela da RTP de 1993) e, aprendi imenso. Aprende-se muito a vê-los falar, a vê-los fazer, como é que fazem, como é que chegam ao processo (...)”.
João Cabral fez, igualmente, parte do elenco da série ‘Mau Tempo no Canal’, realizada por Zeca Medeiros. Embora fosse um trabalho de televisão, “o Zeca tem uma forma de trabalhar muito diferente porque gosta de cinema e foi um projeto muito particular”, referiu, lembrando que “era a nossa obra, a grande obra do Vitorino Nemésio e foi-lhe dado, também, a possibilidade de trabalhar daquela forma. Nós levamos muito tempo a fazer o ‘Mau Tempo no Canal’ e penso que esse tempo foi essencial para a qualidade final. Permitiu-lhe repetir muitas vezes cada take, até ter a certeza que era aquilo que queria. (…) Foi um prazer fazer aquela personagem e trabalhar com toda aquela gente com tanta qualidade”.
Para além de representar, João Cabral gosta de ensinar e encenar. Afirma que dirigiu “dois grupos de teatro universitário e gostei muito. Isto permite sair fora da caixa, podemos ser um bocadinho transgressores até da arte teatral porque não estamos muito condicionados (...). Portanto, isso dá uma enorme liberdade nas escolhas que se vai fazendo, até nos temas, na forma como se apresentam as peças. Gosto de fazer coisas com os outros. O teatro, por essência, tem essa característica, nós fazemos coisas, é sempre um trabalho de grupo, e é nessa afinada das escolhas de cada um, das trocas que cada um imprime no seu trabalho, que o mesmo vai avançando”.
Salienta ainda que esse processo de chegar ao produto final é o mais interessante, “é um momento que pode ser de instabilidade, que às vezes dá umas certas dores de cabeça, mas ao mesmo tempo é o momento em que tudo está em aberto, podemos ir para aqui, para ali e vamos escolhendo, à medida que os ensaios vão se realizando”. Desta forma, sublinha que “gosto de dar aulas, gosto de ver a capacidade de crescer, de abrir caminhos e encontrar, nas pessoas com quem trabalho, os momentos em que se ultrapassam a si próprios, que se revela, para eles, um novo mundo, uma nova maneira de estudar, não só no teatro, no palco, mas também no mundo. É um abrir os olhos”.