Açoriano Oriental
Barbeira luso-americana na Terceira
“Uma rapariga não me vai cortar o cabelo”

A profissão de barbeiro é para menino e menina. Chelsie Santos assim o confirma. Entre Rhode Island e a Ilha Terceira vai um percurso feito em cortes de navalha. E um contributo para contornar o preconceito de género.


Autor: Sónia Bettencourt

Aos 13 anos, quando disse ao seu pai que lhe queria cortar o cabelo por considerar “mal feito” o novo corte então exibido, estava longe de imaginar ser aquele o seu futuro profissional. E se antes fez o mesmo a um primo, não interpretou como um percurso que se fazia anunciar.

Tudo normal para Chelsie Santos, agora barbeira de profissão, de 25 anos, nascida em Rhode Island, nos Estados Unidos da América (EUA), filha de pais terceirenses (naturais da freguesia da Terra Chã e da Vila das Lajes), sendo o seu pai Vítor Santos, figura bem conhecida nos Açores e na diáspora, ligado ao Grupo Amigos da Terceira e à cultura popular através do Carnaval, das Sanjoaninas e das Cantigas ao Desafio.

“Tenho dupla nacionalidade”, começa por dizer a jovem, com orgulho, contextualizando as suas temporadas em Portugal, mais propriamente na Ilha Terceira, e a participação activa da sua família nas tradições culturais da terra-natal dos seus progenitores.

É uma vida repartida a meio do “rio atlântico”, como diz o escritor Onésimo Teotónio de Almeida, de coração pintado de quinas e estrelas e listas, tentando relacionar dois mundos onde vive e pertence por inteiro.

“Quero abrir a minha própria barbearia lá em casa, nos EUA, mas com as técnicas e o estilo europeu, isto é, com curso de navalha e serviço de café. E, também, com todo este ambiente acolhedor que, no fundo, é mais do que uma barbearia”, explica Chelsie Santos, referindo que criou a sua marca “Cuts by Chels” em 2015, depois passou pela barbearia do reconhecido profissional e empreendedor terceirense João Rocha, na Vila das Lajes, com o intuito de praticar e saber mais, e, após três meses, regressou aos EUA para apostar na sua formação profissional. Foi ainda especializar-se numa escola em Toronto há dois anos.

“Agora estou novamente aqui, na Terceira, a trabalhar na Barber Shop Joca Brasil, pois decidi vir para Lisboa e para os Açores para conhecer mais e melhor a cultura europeia nesta área. Tenho muitos clientes que são descendentes de portugueses açorianos e do continente. Eles adoram este estilo e, por isso, sentem-se em casa”, justifica.

Neste sentido, segundo Chelsie Santos, engane-se quem pensa que os sonhos não podem ser concretizados nos Açores. Nos EUA há mais oportunidades, mas, ressalva a jovem, “temos muitas coisas boas nas ilhas e isso nem sempre é valorizado dentro de portas”.

“Os meus amigos dizem: vens para a Terceira e muitos de nós com vontade de ir para a América. Claro, a América é incomparável para fazer negócios e dinheiro. Mas aqui a qualidade de vida é elevada: calma e saudável. Com muita natureza por todo o lado. Na América andamos quilómetros para chegar à beira-mar, por exemplo”, diz a barbeira.

Porém, reconhece a capacidade de muita gente nos Açores para pensar “fora da caixa”, expressando as suas ideias e a sua criatividade, sem medo de arriscar, ao mesmo tempo que partilham tudo com os outros no sentido de engrandecer a sua vida e o seu currículo.

“As pessoas têm que fomentar o seu próprio potencial”, defende.

 

 

O mundo cabe na barbearia

De acordo com Chelsie Santos, as barbearias passaram do estilo clássico para o vintage, transformando-se em estabelecimentos que oferecem serviços que vão além dos cuidados da barba, do cabelo e do bigode. Têm ambiente, decoração e utensílios que nos fazem recuar no tempo até à década de 40/50.

A Barber Shop Joca Brasil, de Jorge Brasil, possui um toque inglês na sua decoração influenciado pelas viagens que faz todos os anos a diferentes países do mundo, visitando inclusive as barbearias locais.

“Já conheço o Joca há anos através da irmã dele, a Vera. Ele sabia que eu vinha passar um tempo a Portugal e convidou-me para cá estar. O objectivo é, por um lado, aprendermos uns com os outros, e, por outro, ensinarmos o que sabemos”, contextualiza a barbeira que chegou em agosto último e prevê regressar aos EUA em dezembro próximo, sem data marcada para um novo regresso aos Açores.

Questionada sobre o que encontrou na Barber Shop Joca Brasil, a jovem enaltece a humildade das pessoas e a sua abertura em acolher toda a gente que procura os serviços de barbearia, bar e jogo de matraquilhos.

Joca Brasil, ligado à actividade há sete anos, mas com este espaço na Praia da Vitória desde 2017, sublinha igualmente a importância da troca de experiências e partilha de conhecimentos entre os cinco barbeiros da sua Barber Shop e a Chelsie Santos.

“Isto resulta de um trabalho que não é só meu, o Délcio Mendonça tem aqui também um papel importante. Somos cinco ao todo e o meu filho prepara-se para seguir o caminho da barbearia”, prontifica.

 

 

Ser barbeira entre os homens

Chelsie Santos confessa que o preconceito de género ainda existe e, no seu caso, só desde há três anos tem havido uma outra aceitação. Isto significa ouvir cada vez menos: “uma rapariga não me vai cortar o cabelo!”. Quer nos EUA, quer nos Açores, segundo a experiência pessoal da jovem, uma mulher barbeira motiva menos confiança em comparação com um homem.

“Na Ilha Terceira, serei a primeira e, até ao momento, a única barbeira. Quando tinha 13 anos não se via nenhuma mulher dedicada a este ofício, na altura eu mesma nunca entrei numa barbearia. Nos últimos dois anos começou-se a ver muitas nos EUA, que aos poucos vão ganhando o seu espaço”, salienta.

Por seu turno, Joca Brasil refere que, nos primeiros dias, teve sempre o cuidado de clarificar junto dos clientes da casa que Chelsie era barbeira e não cabeleireira.

“Já houve quem tivesse oferecido resistência a cortar o cabelo com ela. Mas quem aceitou, gostou e acabou rendido”, diz o barbeiro, sublinhando que “a desconfiança passa pela confusão com o trabalho de uma cabeleireira”.

A jovem conta que, mesmo nos EUA, os seus clientes - os que sempre o foram desde o início e os convertidos ao seu trabalho depois de verem os resultados -, enaltecem a sua “atenção ao detalhe”, algo que a deixa “muito satisfeita” à semelhança de uma marca de autor geradora de confiança.

Recorda, a propósito, que participou no Lady Barber Competition, no Connecticut Barber Expo 2019, organizada por Jay Majors, e que alcançou o 3.º lugar entre 33 participantes.

“Nunca na minha vida ia acreditar nisso. Sinal que as raparigas e as mulheres estão a ter coragem e força. Acredito que vão fazer a diferença nesta fase da história”, remata.



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