Açoriano Oriental
Nadadores-salvadores denunciam exploração laboral e falhas de segurança

Um grupo de nadadores-salvadores que trabalhou durante o verão de 2025 em Ponta Delgada acusa empresas de incumprimentos e violação das regras de segurança. A denúncia expõe o lado de quem salva vidas nas praias


Nadadores-salvadores denunciam exploração laboral e falhas de segurança

Autor: Filipe Torres

Um grupo de nadadores-salvadores que trabalhou durante a época balnear de 2025 em Ponta Delgada denunciou ao Açoriano Oriental as condições em que trabalharam, acusando a empresa Associação Centelha D’Aventura de “incumprir contratos, violar normas de segurança e cometer diversas irregularidades laborais”.

A empresa, fundada em 2011 e sediada em Arcos de Valdevez, foi a vencedora do concurso público lançado pela Câmara Municipal dePonta Delgada para a prestação deste serviço nas zonas balneares do concelho.

Segundo informação presente no site do Instituto de Socorros a Náufragos, a Centelha D’Aventura é uma empresa de nadadores-salvadores licenciada, que tem atuado no maior concelho dos Açores desde 2022, mas não só: de acordo com a pesquisa na Base.Gov, também a Direção Regional de Políticas Marítimas (prestação do mesmo serviço nas zonas balneares da Maia e São Lourenço, na ilha de Santa Maria, Ponta da Ferraria, na ilha de São Miguel e Porto Pim, na ilha do Faial, em 2022, 2023 e 2025) e o Município de Vila do Porto (para vigilância e assistência balnear dos Anjos, em 2024).

As queixas foram reunidas num dossiê extenso em que detalha a experiência dos trabalhadores entre junho e setembro, e descreve uma sucessão de falhas que, segundo os denunciantes, colocaram em risco tanto os profissionais como os banhistas. O grupo, composto maioritariamente por nadadores estrangeiros oriundos do Uruguai, Argentina, Brasil e também de Portugal, optou por manter o anonimato coletivo.

De acordo com o documento, as condições oferecidas no início (um salário de 1.500 euros mensais, quatro folgas por mês, alojamento em residência universitária, transporte garantido para as praias e formalização do vínculo por recibos verdes) nunca se concretizaram na prática. Logo nas primeiras semanas, os trabalhadores viram-se obrigados a caminhar até uma hora por dia, carregando todo o equipamento, para chegar a praias como Pópulo e Milícias. As bicicletas prometidas pela coordenação chegaram tardiamente e em mau estado: sem travões, sem mudanças funcionais e sem os capacetes obrigatórios. Os nadadores-salvadores referem ainda que trabalharam diariamente das 9h30 às 19h00 sem pausa para almoço, sob forte exposição solar e sem protetor fornecido.

Os nadadores afirmam que a falta de organização agravou-se com o passar dos meses. As comunicações com os coordenadores, identificados como João Davide Araújo (presidente da Centelha D’Aventura), Ivo, Miguel e Frederico, faziam-se quase exclusivamente por WhatsApp. As respostas eram escassas. Segundo o dossiê, a desinformação era constante, e os trabalhadores foram mantidos na incerteza quanto à validade dos contratos, à existência de seguro de acidentes e ao pagamento dos salários. Houve ainda episódios em que os nadadores-salvadores foram deixados sozinhos nos postos de vigilância, sem qualquer apoio.

Um dos nadadores, natural do Uruguai, aceitou dar o seu testemunho ao Açoriano Oriental. “Desde que chegámos à ilha, as promessas começaram a ser quebradas.

 Trabalhamos sem coordenação, só comunicavam connosco por WhatsApp. Chegámos a estar sozinhos na praia, sem supervisão”, contou. O nadador descreve um ambiente de tensão e humilhação: “Chamavam-nos de burros, e mulas. Diziam que nos nossos países só sabíamos pedir direitos e fazer reclamações. Foi uma falta de respeito enorme.”

Segundo ele, a maioria dos nadadores-salvadores em Portugal são estrangeiros e encontram-se numa situação vulnerável, sem contratos assinados, longe das suas famílias e frequentemente dependentes das associações privadas que os contratam. “Há falta de nadadores-salvadores no país, e o sistema facilita este tipo de exploração. As associações ganham contratos públicos a preços baixos e depois fazem o que querem connosco”, denunciou.

A situação tornou-se crítica em agosto, quando os salários deixaram de ser pagos. “Não recebíamos nada desde o dia 9 de agosto. Todo o mês sem dinheiro, sem comida e sem alojamento. Foi uma semana terrível, não sabíamos onde dormir”, relatou o nadador do Uruguai. Alguns colegas acabaram por abandonar a função e foram substituídos à pressa, enquanto outros resistiram na esperança de que as condições melhorassem.

No entanto, em setembro, a coordenação informou que a época balnear terminaria a 15, e não a 30 como estava previsto nos contratos. Muitos nadadores tinham já alterado as passagens de regresso aos seus países, gastando entre 300 e 600 euros, e ficaram subitamente “sem salário, sem casa e sem perspetivas”, enquanto procurava por uma nova habitação.

Perante o desespero, os trabalhadores decidiram procurar ajuda junto da Câmara Municipal de Ponta Delgada. De acordo com os relatos, o vice-presidente Pedro Furtado reuniu-se com o grupo durante mais de uma hora e meia e reconheceu a gravidade da situação.

“A Câmara foi muito respeitosa e generosa connosco. Pagaram o alojamento e a comida, resolveram tudo no mesmo dia e pediram desculpa”, afirmou o nadador do Uruguai. Os nadadores afirma que a Câmara confirmou que a Centelha D’Aventura deixaria de ser contratada pela autarquia e que o caso estava a ser encaminhado para tribunal por incumprimento contratual. Segundo o trabalhador, o vice-presidente prometeu ainda tentar alterar o modelo de contratação para futuras épocas balneares, optando pela contratação direta dos nadadores-salvadores em vez de recorrer a associações intermediárias.

O dossiê de denúncia inclui ainda vários eventos detalhados, como o acidente de um trabalhador que caiu de bicicleta a caminho do trabalho devido a falhas mecânicas.
No final da época balnear, o grupo realça que exigiu apenas que fossem respeitados os seus direitos e pagas as quantias em atraso. “Viemos para Portugal para trabalhar, para salvar vidas. O mínimo que merecemos é dignidade”, concluiu o nadador salvador, antes de regressar ao Uruguai.

Até ao momento, os nadadores afirmam que a Associação Centelha D’Aventura não pagou na totalidade aos nadadores salvadores. Contactada pelo Açoriano Oriental, a empresa  decidiu não prestar declarações sobre o assunto.

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