Açoriano Oriental
No centenário do movimento nos Açores, o escutismo “é mais preciso que nunca na sociedade”

No dia 26 de agosto de 1925, o movimento escutista nascido nos Açores, na freguesia da Conceição, Angra do Heroísmo. Um século depois, qual é a realidade dos escuteiros e o que ainda cativa jovens açorianos a aderirem à Junta Regional do Centro Nacional de Escuta?



Autor: Nuno Martins Neves

O que atrai os jovens ao escutismo? O que é que o movimento de escutas ainda dá à sociedade? No centenário do surgimento do primeiro agrupamento de escuteiros nos Açores - data que se assinala amanhã, segunda-feira, dia 26 de agosto, apesar das celebrações já se terem iniciado - o Açoriano Oriental ouviu três testemunhos

Os valores do escutismo
João Carlos Tavares  tinha 7 anos quando entrou para os escuteiros. Corria o ano 1978 e a paixão pelo ar livre, os acampamentos e o serviço em prol da comunidade entraram na sua vida e nunca mais saírem. Hoje, com 55 anos, prepara-se para presidir aos festejos do centenário do movimento nos Açores: a cumprir o último mandato como Chefe Regional do Corpo Nacional de Escutas dos Açores, este terceirense considera que a sociedade atual precisa do escutismo como nunca.

“Para mim, o escutismo hoje é cada vez mais essencial na sociedade de hoje, com muito mais importância. Sempre foi importante ao longo dos 100 anos, mas sinto que hoje cada vez é mais preciso o escutismo na sociedade”.

Uma necessidade que, diz, assenta nos pilares do movimento: da partilha, da responsabilidade, da solidariedade. “Há certos valores que nós incutimos nos jovens, que são muito importantes para viver em sociedade, para quebrar um bocadinho o egoísmo e a solidão. O movimento escutista forma pessoas para a trabalhar numa sociedade. Nós temos o espírito do serviço, estar sempre pronto à alerta, sempre pronto para servir”.

Apesar de reconhecer que a importância do que se aprende no escutismo, o Chefe Regional também assinala que há um desafio crescente em chamar os jovens para o movimento.

“É mais difícil em parte. Falando como dirigente atual: nós temos que ter gente cada vez mais preparada. A sociedade muda, os jovens mudam, todo vai mudando. Os desafios de hoje são que os jovens que estão isolados, com tecnologias. Todos nós devemos estar preparados para dar resposta a estas situações”.

Mas João Carlos Tavares aborda outro aspeto: o movimento precisa de ser mais cativante (ver caixa) para os mais jovens, mas também para os adultos, pois a carência de dirigentes é também uma realidade.

“Precisamos de mais adultos no movimento, de forma a conseguirmos dar mais resposta a mais jovens. . Porque, infelizmente, vemos muitos jovens a quererem entrar para os nossos agrupamentos e nós com poucos dirigentes para dar resposta a esses jovens”.

Isto porque, explica, é preciso haver um “rácio de equilíbrio” entre o número de dirigentes adultos para o número de jovens escuteiros. Um problema que se agravou com o crescente número de açorianos que começou a licenciar-se, principalmente fora da região.

“A partir dos 18 anos, os nossos Caminheiros, vão para a universidade, vão para fora, e perdem a ligação com o movimento na região. E desde que há mais saída de jovens para a formação superior, perdemos mais. Vamos tentar aperfeiçoar o nosso recrutamento. A nossa formação é um bocadinho exigente, e isso, às vezes, pode afastar um bocadinho as pessoas”.

O decano dos escuteiros
José Maria Jorge é um dos mais antigos escuteiros dos Açores ainda vivos. Aos 74 anos de idade, a história deste micaelense natural da freguesia do Pico da Pedra confunde-se com uma parte significativa do movimento nos Açores. Ligado ao movimento desde os seus 10 anos - nos 64 anos que leva de escuteiro, só interrompeu durante um ano, por causa do serviço militar - foi durante 32 anos o responsável do corpo de escutas em São Miguel.

A ligação de José Maria Jorge começa com um desconhecimento: “Eu até não sabia o que era o escutismo”, partilha em entrevista ao Açoriano Oriental. Conta que foi a curiosidade que lhe causava a ida de um sacerdote, assistente dos escuteiros, de 15 em 15 dias, à Instrução Primária, bem como um amigo lhe ter explicado o que era isso de ser escuteiro - “disse-me que saíamos atrás de aventuras, que brincávamos muito” - que o levou a entrar no movimento.

“Era um movimento pequeno. O escutismo estava a dar os primeiros passos aqui na região Açores, trabalhávamos isolados em cada ilha, não havia intercâmbio entre ilhas, fazendo o melhor que sabia e podia. Havia pouca literatura, a que tínhamos era traduzida dos escuteiros americanos que existiam na base das Lajes”, recorda.

Uma realidade diferente da existente nos dias de hoje, onde só em São Miguel existem perto de 30 agrupamentos. E para quem dedicou mais de seis décadas da sua vida ao movimento, o que define o escutismo?

“Toda a essência do escutismo é passada ao ar livre:digamos que a sede é um local de passagem, é unicamente onde nós aprendemos as técnicas, a teoria para depois aplicarmos no campo. Toda a atividade tem que ser ao ar livre senão, com todo o respeito que merece a catequese, seria um prolongamento da catequese”.

E acrescenta: “O escutismo é formar os jovens, pô-los em contacto com a natureza, admirarem as belezas que Deus criou para deleite de nós todos, utilizá-las bem, preservar tudo quanto a natureza nos dá. E para isso temos várias atividades, com os pais, com as crianças, com a comunidade: sensibilizá-los para que haja um cuidado extremo pela natureza. Digamos que nós fomos os primeiros ecologistas aqui dos Açores a defender a natureza”.

Reconhecendo que o escutismo de hoje é distinto do que conheceu na década 60 do século passado, José Maria Jorge reconhece que ainda continua a ser cativante para os jovens, apesar da necessidade do movimento ter de se adaptar à realidade.

“Essa capacidade de nós nos adaptarmos é que tem contribuído para que o movimento não desapareça e continue a crescer, tanto a nível nacional, regional e mundial. Os jovens têm, no seu seio, um sentimento de querer ajudar. Agora, têm que ser despertos para esta necessidade”.

Ter capacidade para combater o comodismo e as redes sociais através de atividades “apelativas que os despertem para a realidade e que os façam sentir-se que também são necessários e que têm que ser, também, ativos do seu próprio crescimento, do seu próprio desenvolvimento. E que isso faz-se não só a nível individual, mas também na sociedade”.

Da sua longa história - que ainda continua e que tem continuidade na própria família (filhos e netas) - José Maria Jorge recorda dois momentos marcantes: o encontro regional em Vila Franca do Campo, que reuniu perto de 2 mil escuteiros, e a tragédia da Ribeira Quente, em 1997.

“Durante 15 dias estive lá e foi marcante ver o sofrimento, ver aquela angústia daquelas pessoas, a limpeza da freguesia. A nós competíamos um serviço de retaguarda: todos os dias comunicávamos para Ponta Delgada o material que era necessário para ser utilizado no dia a seguir, e cozinhávamos na sala dos escuteiros”.

Um reflexo do papel comunitário que, reconhece, também é um traço do escutismo: “O nosso lema é precisamente servir. O próprio fundador apelava à boa ação diária, em que os escuteiros se comprometiam a fazer algo bom todos os dias. Portanto, esse serviço à comunidade, gratuitamente, fazemos de alma aberta, coração aberto, com alegria, porque sabemos que estamos indo ao encontro dos nossos ideais”.

Família que ensina lições
Daniel Medeiros (17 anos) começou cedo no escutismo: com a ida da irmã para os Pioneiros, o jovem terceirense decidiu “seguir-lhe os passos” e com seis anos já estava no movimento.

Hoje, é  ele próprio um Pioneiro e reconhece que os escuteiros tornaram-se “uma parte importante da minha vida. Um dos aspetos que mais valorizo nesta experiência é o contacto com a natureza, que nos ensina a respeitar e a cuidar do mundo que nos rodeia”.

Além disso, o respeito, os valores e os princípios que o movimento transmite, e que Daniel Medeiros considero “fundamentais para crescermos enquanto pessoas”, foram outros aspetos que o fazem continuar nos escuteiros.

“Esses valores são cada vez mais importantes nos dias que se seguem, numa sociedade que muitas vezes se esquece da partilha, da solidariedade e da entreajuda. É por isso que sinto tanto orgulho em fazer parte desta família, que me tem ensinado lições que levo comigo para a vida”.

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