Açoriano Oriental
Ucrânia: A cidade sem luz

Com a filha ainda bebé ao colo, Tatiana despede-se do marido entre fortes abraços e lágrimas nos olhos na cidade sem luz de Kamianets-Podilskyi, sudoeste ucraniano, antes de entrar na carrinha que a transportou para Botosani, na vizinha Roménia.


Autor: Pedro Caldeira Rodrigues/Lusa/AO Online

“A cidade está sem luz para evitar que seja detetada pelos aviões. E toda a população também desligou as localizações dos telemóveis”, indica Tatiana, 43 anos, após ambas se acomodarem na carrinha, onde também viajavam jornalistas portugueses, e com Eva ainda agitada, a perguntar pelo pai. Depois, acalma, desenhos animados no telemóvel, bolachas, e acaba por adormecer.

“Vê muitos vídeos e filmes estrangeiros, quando fala connosco mistura palavras da nossa língua e inglês”, diz a mãe, também sempre pegada ao telemóvel para receber e enviar mensagens aos familiares próximos, e atualizar informações.

Tatiana foi uma das três ucranianas que viajaram com os nove jornalistas portugueses – duas equipas da SIC, uma da RTP, uma da CNN Portugal e o enviado da Lusa - que saíram de Kiev pouco passava das 9h00 da manhã de 01 de março, numa debandada de muitos ‘media’ internacionais que se encontravam em reportagem pela capital ucraniana. As duas primeiras acompanharam os jornalistas portugueses desde a capital ucraniana, onde nasceram.

Após muitos contactos e uma tentativa falhada de viajar de comboio em direção a oeste e à fronteira polaca no último dia de fevereiro, a embaixada portuguesa conseguiu contratar um motorista e carrinha, um aluguer de 5.000 dólares repartido pelos jornalistas.

Quando Tatiana e a filha foram recolhidas às 19h00 em Kamianets-Podilskyi, sudoeste da Ucrânia e atravessada pelo rio Smotrich, já parte considerável do percurso de 635 quilómetros, também feito por estradas secundárias e sinuosas, tinha sido percorrido.

A fronteira com a Moldávia não estava longe e já tinham passado dez horas desde a saída de Kiev. Chegou-se ao destino final em plena madrugada, quatro da manhã. Um total de 19 horas.

Quando Tatiana se juntou ao grupo, a cidade estava escura, como breu. Apenas alguns ténues focos de luz que pareciam suspensos, pequenos retângulos provenientes de janelas de alguns dos grandes edifícios junto à estrada. Ou dos semáforos em funcionamento, de um ou outro veículo. Um silêncio arrasador.

A história de Tatiana atravessa as convulsões registadas nesta parte da “outra Europa”, eslava e ortodoxa. Nasceu em 1988, cidadã da União Soviética. Obteve a nacionalidade ucraniana após a independência em 1991 após a desagregação da União Soviética. E também tem passaporte português.

O pai era médico cirurgião militar de nacionalidade russa. A mãe também é médica. Antes de Tatiana nascer, foram cooperantes em Moçambique. Após a morte do marido, e por entender português pela sua estadia na antiga colónia, decidiu instalar-se em Portugal após a independência da Ucrânia, também devido aos graves problemas económicos do país, onde se tinha instalado. Hoje, continua a exercer a sua profissão em Torres Novas.

“Tenho muitos amigos russos, continuamos a trocar mensagens. Entendo perfeitamente a língua russa, tudo isto é uma insensatez, e não sei como vai terminar”, desabafa.

“A minha mãe adora vier em Portugal, e eu também gosto muito, um país pequeno, mas muito bonito”, adianta.

Casou-se em Sintra com o marido, permaneceram algum tempo, arranjaram trabalho. Mas acabaram por regressar, até agora.

“O meu marido está na lista de mobilização, mas espero que não seja chamado para combater. É um especialista em informática, em programação, e julgamos que será útil nessa área”, assinala com os seus olhos azuis muito reluzentes, e um sorriso que revela esperança.

A conversa prossegue, a carrinha continua a parar nos muitos postos de controlo montados pelo exército ou milícias ucranianas.

Montes de lenhas acumulam-se, vindas de árvores derrubadas nas pequenas florestas das proximidades. Faz frio e continua escuro. Muitos militares, milicianos, usam lanternas de mineiro presas aos capacetes. Outros descansam nas barricadas ou estão junto das metralhadoras assentes em tripés. Todos fortemente armados.

A fronteira da Moldávia, outra ex-república soviética está próxima. O território ucraniano é abandonado a pé, algumas centenas de metros através de uma terra de ninguém. Já na Moldávia, outra carrinha aguarda para o transporte até à cidade romena de Botosani, extremo norte da Roménia.

Aí, as fronteiras moldava e romena estão quase juntas. Percorrem-se poucos quilómetros para chegar à fronteira, mas a fila de carros parece não ter fim. Passa das 22:00, e a espera será longa. O cansaço acumula-se. Por fim, o hotel, 19 horas após a saída de Kiev, que pouco após a nossa partida foi atacada em zonas mais próximas do centro da cidade.

Botosani estava adormecida. Finos flocos de neve receberam a comitiva. Da janela do quarto uma pequena praça iluminada, branca, com bandeiras da Roménia, azul amarelo e vermelho e da União Europeia (UE), as 27 estrelas, lado a lado, presas em postes de iluminação. Um país dos Balcãs, que também ficava no outro lado da Europa, mas que se aproximou do seu ocidente. Um desejo de muitos ucranianos, ainda com o seu destino em suspenso, e agora marcados por uma guerra total no seu território.


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