Autor: Lusa /AO Online
Em novembro de 2015, pela primeira vez na história da democracia portuguesa, o segundo partido mais votado nas eleições legislativas formou Governo e remeteu para a oposição a coligação que venceu o ato eleitoral.
A coligação PSD/CDS-PP, liderada por Pedro Passos Coelho, foi a mais votada, obteve cerca de 37% dos votos, mas ficou sem a maioria dos deputados no parlamento.
Após pouco mais de uma semana de negociações entre PSD/CDS e PS, que tinha saído das eleições com pouco mais de 32% dos votos, o líder socialista, António Costa, deu por encerradas as conversações e anunciou que não iria viabilizar o segundo executivo de Pedro Passos Coelho.
No parlamento, com o apoio do BE, PCP e PEV, o PS fez aprovar uma moção de rejeição programa de Governo apresentado por Pedro Passos Coelho. Em alternativa, António Costa chegou a acordo com o BE, PCP e PEV para a formação da “geringonça”: Executivo minoritário socialista, tendo como base um inédito suporte parlamentar desses partidos.
As dúvidas sobre a durabilidade e a credibilidade externa do XXI Governo Constitucional, o primeiro de dois liderados por António Costa, estiveram bem presentes logo quando o então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, lhe conferiu posse no final de novembro 2015.
No seu discurso, Cavaco Silva considerou que as posições conjuntas subscritas por PS, BE, PCP e PEV, que ele própria exigira a esses partidos, não dissipavam dúvidas quanto à estabilidade política. E advertiu que, durante os últimos meses do seu mandato, tudo faria para que Portugal preservasse a "credibilidade e mantivesse uma trajetória de crescimento".
Dois anos depois, já com Marcelo Rebelo de Sousa no cargo de Presidente da República desde março de 2016, verificou-se que as dúvidas de Cavaco Silva afinal não se confirmaram.
Portugal fechou 2017 com um défice de 1,1%, com o desemprego a cair até aos 8,5% e um crescimento económico na ordem dos 2,6%. No plano financeiro, os juros da dívida portuguesa a 10 anos (o valor de referência) caíram para níveis mínimos históricos desde a adesão de Portugal à moeda única.
Entre novembro de 2015 e o final de 2017, o Governo ultrapassou uma série de graves problemas financeiros no setor da banca (Banif, Caixa Geral de Depósitos e Novo Banco). E, mais surpreendente para a generalidade dos analistas financeiros, foi o facto de os resultados de consolidação financeira terem sido obtidos a par de medidas orçamentais tendentes a um aumento da despesa e a uma redução das receitas fiscais, como a eliminação faseada dos cortes salariais na administração pública e da sobretaxa em sede de IRS, da descida do IVA da restauração de 23 para 13% ou o aumento da generalidade das pensões em 2017.
Medidas que inicialmente provocaram sérias dúvidas junto da Comissão Europeia sobre a capacidade de Portugal garantir por esse caminho os seus compromissos internacionais ao nível financeiro e que, de resto, estiveram na origem de um longo braço-de-ferro entre Lisboa e Bruxelas, no primeiro trimestre de 2016, para a aceitação do primeiro Orçamento deste Governo.
Na frente externa, o Governo português, designadamente no seu primeiro ano, escapou à aplicação de sanções por parte da União Europeia e saiu formalmente em junho de 2017 do Procedimento por Défice Excessivo.
Os sinais de erosão na “geringonça” começaram a registar-se com a discussão do Orçamento do Estado para 2018, envolveram desde o início o Bloco de Esquerda, e tornaram-se progressivamente mais frequentes e mais graves do ponto de vista político.
No debate do Orçamento para 2018, o Bloco quis criar uma nova taxa sobre as empresas de energias renováveis, o PS num primeiro momento aceitou, mas, depois, o primeiro-ministro pronunciou-se contra e a proposta caiu.
“Comprova que o lóbi das elétricas é poderoso demais para as mudanças que contam e que o PS é permeável a estas imposições”, acusou então a coordenadora bloquista, Catarina Martins.
Meses depois, o Bloco de Esquerda entregou no parlamento uma resolução de rejeição ao Programa de Estabilidade por o Governo não manter a meta de défice de 1,1% para 2018 e projetar antes 0,7%, “desviando” cerca de 800 milhões de euros do investimento e despesa pública para a consolidação orçamental. António Costa contrapôs que os acordos com os parceiros parlamentares (BE, PCP e PEV) foram celebrados em torno de medidas e não de metas do défice.
Ao fim de alguns dias de incerteza política, o PSD comunicou que não viabilizaria a moção de rejeição do Bloco, o cenário de crise desapareceu e o Governo entregou o seu Plano de Estabilidade em Bruxelas. Este caminho de redução do défice foi prosseguido pelo ministro das Finanças, Mário Centeno, sem cedências, tanto a partidos, como dentro da própria equipa governamental. E a legislatura terminou com Portugal a alcançar um inédito excedente orçamental de 0,2%.
Nas votações na especialidade do Orçamento para 2019, novo episódio de drama: O Governo deparou-se com aquilo que caracterizou como “coligação negativa” de BE, PCP, PEV com PSD e CDS-PP por uma redução do IVA da energia. Uma medida cujo impacto o ministro das Finanças estimou em centenas de milhões de euros por ano e que levou mesmo o executivo a equacionar o cenário de demissão caso fosse aprovada, o que não aconteceu por ausência de consenso entre PSD e PCP em torno da formulação final dessa proposta.
A mais grave crise interna na “geringonça” aconteceu no final da legislatura, semanas antes das eleições europeias, quando Bloco, PCP, PEV, PSD e CDS-PP aprovaram em sede de Comissão Parlamentar de Educação um diploma para a contabilização total do tempo de serviço dos professores.
Numa comunicação ao país, em 03 de maio de 2019, o primeiro-ministro afirmou que se demitiria caso esse projeto fosse aprovado em votação final global, alegando que o país não conseguia suportar financeiramente tal aumento de despesa fixa.
Depois desta ameaça de António Costa, PSD e CDS-PP mudaram de posição na votação final global e já não aprovaram o texto proveniente da comissão para a reposição integral do tempo de serviço dos professores
Nas eleições legislativas de 2019, ao contrário do que acontecera em 2015, o PS venceu sem maioria absoluta (cerca de 36% dos votos) e António Costa iniciou uma série de consultas com o BE, PCP, PEV, PAN e Livre para procurar soluções de estabilidade para o seu novo Governo.
Se em 2015 Cavaco Silva exigiu aos partidos da esquerda um acordo escrito para aceitar empossar um Governo minoritário socialista, o mesmo não aconteceu com Marcelo Rebelo de Sousa em 2019. E o PCP recusou celebrar com o PS uma nova declaração conjunta de compromisso político para a legislatura.
Apenas o Bloco de Esquerda aceitou negociar com os socialistas um acordo escrito. No entanto, poucos dias depois das eleições legislativas, António Costa afirmou que não faria qualquer acordo escrito de legislatura com outras forças parlamentares. Ressalvou, no entanto, que a metodologia de trabalho adotada na anterior legislatura iria manter-se com os parceiros.
Nesta legislatura, marcada pela pandemia da covid-19, o Orçamento para 2020 passou com as abstenções do BE, PCP, PEV e PAN, mas o Orçamento Suplementar desse ano já teve o voto contra da bancada comunista e PEV – um facto que o primeiro-ministro tentou nessa altura desdramatizar do ponto de vista político.
No Orçamento do Estado para 2021, com o país em plena crise sanitária, económica e social por causa da covid-19, o BE votou contra, transmitindo assim uma mensagem clara de afastamento político em relação à solução governativa. A viabilização da proposta do Governo foi suportada apenas por PCP, PEV, PAN e pelas deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues.
Este ano, antevendo um cenário de chumbo do Orçamento para 2022, o Presidente da República avisou que dissolveria o parlamento e convocaria eleições legislativas antecipadas se a proposta orçamental do Governo fosse chumbada.
Em 27 de outubro, na votação na generalidade do Orçamento para 2022, o BE voltou a votar ao lado do PSD, CDS, Chega a Iniciativa Liberal contra a proposta do Governo. PCP e PEV juntaram-se a este conjunto de partidos e o Orçamento chumbou, tendo apenas o apoio do PS, as abstenções do PAN e das duas deputadas não inscritas.
A “geringonça”, que nasceu em novembro de 2015 para derrubar um segundo executivo PSD/CDS-PP e para formar governos alternativos minoritários do PS, suportados pela esquerda no parlamento, morreu nesse dia.
A seguir, o Presidente da República ouviu os partidos, reuniu o Conselho de Estado e anunciou a dissolução do parlamento e a marcação de eleições legislativas antecipadas para 30 de janeiro de 2022.