Autor: Lusa/AO Online
“A América está de volta”, pronunciou solenemente Biden, quando chegou à Casa Branca, em janeiro, assegurando que os Estados Unidos regressariam aos palcos mundiais para liderar um grupo de democracias empenhadas em fazer frente às ambições expansionistas dos países autocráticos, em particular a China.
Na cimeira virtual - marcada para os próximos dias 09 e 10 e organizada a partir de Washington - o Presidente norte-americano vai reunir líderes de governos, mas também do setor privado e de organizações civis, num esforço global para defender as democracias contra o autoritarismo, a corrupção e os ataques sistemáticos aos direitos humanos.
A mais recente edição do Relatório Global sobre o Estado da Democracia - do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social (International Idea), com sede em Estocolmo – divulgado em novembro, revela que o mundo está a tornar-se mais autoritário e que os governos democráticos estão a retroceder, com o recurso a práticas repressivas e o enfraquecimento do Estado de Direito.
O relatório mostra que o número de Estados democráticos onde se verificaram retrocessos nos parâmetros avaliados duplicou na última década, incluindo países como os Estados Unidos e alguns países da União Europeia, como a Hungria, a Polónia e a Eslovénia.
Com a Cimeira para a Democracia, Joe Biden procura combater esta tendência de degradação das democracias no planeta, apresentando-a como uma espécie de frente de países livres contra as tiranias e os populismos.
Por isso, alguns grupos de defesa de direitos humanos criticam a listas de países convidados, questionando a legitimidade da presença de alguns regimes cujas referências democráticas são, no mínimo, discutíveis: como a República Democrática do Congo, o Paquistão, o Iraque, a Índia ou as Filipinas.
O regime do Presidente filipino, Rodrigo Duterte, que tem sido acusado de sistemáticos ataques aos direitos humanos, ou o do Presidente indiano, Narendra Modi, que o ‘think tank’ Freedom House considera que está a levar o país para o autoritarismo, são exemplos que organizações internacionais apontam como contraditórios com o espírito da Cimeira para a Democracia.
Um funcionário do Departamento de Estado norte-americano, envolvido na organização da cimeira virtual, explica que a lógica dos convites não se prendeu apenas com a avaliação do grau de democraticidade dos países ou dos líderes, lembrando que houve igualmente uma preocupação com a diversidade regional.
Aplicando a grelha de análise da Freedom House, o lote de países convidados integra 69% de países com regimes livres, 28% de países com regimes parcialmente livres e 3% de países com regimes autoritários.
Em termos geográficos, o hemisfério ocidental tem 27 países, além de 39 países da Europa (incluindo Portugal). Todos os membros da União Europeia irão participar na cimeira, exceto a Hungria, que não foi convidada.
Segue-se a região da Ásia-Pacífico, com 21 países, e da África Subsaariana com 27.
As regiões menos representadas na cimeira são o Médio Oriente (só Israel e o Iraque foram convidados), o Norte de África e a Ásia central.
A nível da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, participam ainda Angola, Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e Moçambique não foram convidados.
A China, Cuba, Guatemala, Venezuela e Rússia são outros países que ficaram de fora.
Os críticos da Cimeira para a Democracia questionam a eficácia do encontro e perguntam o que poderá ser atingido em apenas dois dias de uma reunião em formato virtual, além de denunciarem o teor abstrato dos objetivos colocados.
Lisa Curran, investigadora de Política Internacional da Universidade de Colúmbia, defende a iniciativa, lembrando que pode ser um primeiro instrumento para criar uma “frente de combate democrático”, numa altura em que organizações como as Nações Unidas estão enfraquecidas.
“Há também o problema chamado China. Os Estados Unidos já perceberam que não podem contrariar o crescimento hegemónico chinês sozinhos. Precisam de aliados e precisam de liderar movimentos democráticos contra os autoritarismos”, explicou Curran, em declarações à Lusa.
Nuno Gouveia, especialista em política norte-americana, recorda também os objetivos internos de Biden, defendendo que a cimeira pode ajudar a contrariar o desgaste de popularidade que o Presidente dos EUA tem sofrido, em particular após a conturbada saída de tropas do Afeganistão.
Mas é, sobretudo, no tabuleiro da afirmação externa que Biden joga a cartada da cimeira.
“Biden tem tentado convencer os aliados ocidentais, sobretudo na Europa, a juntarem-se a uma grande aliança contra a China, numa tentativa de limitar a influência chinesa no mundo. Esta cimeira é mais uma ação dentro dessa estratégia, onde até não faltou o convite a Taiwan”, explicou Nuno Gouveia.
“Vai ser um teste ao mantra de Biden “America is Back”, de que os Estados Unidos voltariam à liderança global sob o seu mandato para enfrentar as forças autoritárias lideradas pela China e pela Rússia”, corroborou à Lusa Felipe Pathé Duarte, professor da Nova School of Law.
Numa conferência de imprensa de antevisão do encontro, Dana Banks, assistente especial do Presidente norte-americano, disse que a iniciativa visa a adoção de compromissos e iniciativas para reavivar a democracia em todo o mundo.
“O regresso a princípios democráticos é a chave para abordar a crise climática, sair da pandemia ou assegurar que os impactos da corrupção não afetam as vidas dos mais vulneráveis”, declarou a diretora para África no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, adiantando esperar-se que do encontro saiam “compromissos ambiciosos, realistas e concretos”.