Açoriano Oriental
Isabel II
"Momento de oportunidade" para resolver questões do legado colonial

Académicos africanos e caribenhos dizem que a morte de Isabel II criou "um momento de oportunidade" para resolver questões do legado colonial britânico e antecipam a aceleração de processos de quebra de laços de ex-colónias com a monarquia inglesa.

"Momento de oportunidade" para resolver questões do legado colonial

Autor: Lusa/AO Online

"Há um momento de oportunidade para [o novo Rei Carlos III] resolver o que a sua antecessora não conseguiu fazer de forma decisiva", disse à Lusa a investigadora queniana Awino Okech, professora do departamento de Política e Estudos Internacionais da SOAS - Universidade de Londres.

"O Rei Carlos III pode fazer reparações pelos legados coloniais negativos que resultam da construção de um império sobre o qual 'o sol nunca se põe'", diz Awino Okech, numa referência ao antigo império britânico, que se estendia por todos os continentes e a cuja dissolução assistiu a Rainha Isabel II, que morreu no dia 08 deste mês, após um reinado de sete décadas.

Mas ao império sucedeu "o clube da Commonwealth, que serve de lembrança desse passado, construído sobre sangue e lágrimas de comunidades que não escolheram fazer parte de um projeto que é inerentemente sobre a acumulação de poder", diz Awino Okech.

A Commonwealth é uma comunidade de mais de 50 países, quase todos antigas colónias britânicas, liderada formalmente por Isabel II até à semana passada e, agora, por Carlos III.

"Há grandes debates na sociedade de países que pertencem à Commonwealth sobre o significado e o valor deste grupo", sublinha Awino Okech, que dá como exemplo o seu país, que se tornou independente em 1963, já Isabel II reinava há mais de uma década.

No Quénia, "estes debates são frequentemente em torno dos danos causados pela Unidade de Formação do Exército Britânico no Quénia" e estão relacionados com "homicídios não resolvidos", "crianças que provavelmente nasceram de violações" ou racismo, explica Awino Okech.

A investigadora destaca que os debates em torno do legado colonial britânico e as reivindicações por reparações não são novas e têm sido "parte integrante", desde os anos de 1930, dos movimentos de libertação e anticoloniais, assim como dos pan-africanistas nos países das Caraíbas, da América Latina e da América do Norte que se tornaram independentes do Reino Unido.

Mais recentemente, "a dinâmica sobre as reparações ressurgiu das Caraíbas", explica Awino Okech, para quem o "plano de ação para uma justiça de reparações" apresentado pela CARICOM - Comunidade de Países das Caraíbas, "é um bom ponto de partida para começar a mapear uma resposta abrangente".

O "plano de ação" da CARICOM inclui pedidos formais de desculpa, um "programa de desenvolvimento" para as comunidades indígenas, repatriações ou perdões de dívida, entre outros pontos.

Apesar de os países do antigo império britânico serem hoje todos independentes, há 14 que mantêm o monarca britânico como chefe de Estado, entre eles, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá e a Jamaica.

Até novembro do ano passado, eram 15 países, mas em 2021 Barbados, nas Caraíbas, tornou-se uma república. Já este ano, logo no dia a seguir à morte de Isabel II, outro pequeno estado caribenho, Antígua e Barbuda, aproveitou o momento de apresentação de condolências pela morte da rainha que era a chefe de Estado do país, para reiterar a intenção de passar a república e anunciou um referendo.

Awino Okech lembra que em março deste ano, o filho mais velho de Carlos III e herdeiro da coroa, William, foi à Jamaica e acabou confrontado com os pedidos de compensações e reparações e que "por todos os territórios" independentes onde o monarca inglês ainda é chefe de Estado "tem havido exigências para acabar com esta última ligação visível com a era colonial britânica".

Referindo-se à posição marcada por Antígua e Barbuda logo quando Isabel II morreu, Awino Okech diz serem esperados "movimentos semelhantes dos países de maioria negra nos próximos anos".

"As Caraíbas estão ainda em processo de descolonização", defendeu esta semana a investigadora caribenha Nalini Mohabir, da Universidade Concordia, em Montreal, no Canadá, numa coluna no jornal inglês The Guardian em que questionava "o que mais morreu com Isabel II?" e a que deu o título: "A monarquia tem um dever com a Commonwealth: pagar as suas dívidas e pedir desculpa."

"Muitos países estão a lidar com as feridas abertas infligidas pela conquista colonial e extração de recursos. Estão a deixar de ser nações mais pequenas dentro de um mundo neocolonial que exigia que permanecessem membros da Commonwealth”, como aconteceu durante boa parte do reinado de Isabel II, “para se tornarem protagonistas que estão a perturbar ativamente os legados do império através de apelos a reparações", escreveu Nalini Mohadir, nascida na Guiana, sobre as antigas colónias britânicas nas Caraíbas.

Para esta investigadora, a monarquia inglesa foi "política e economicamente devastadora" para as antigas colónias e no caso dos estados caribenhos que permaneceram na Commonwealth, mantêm, por exemplo, "currículos coloniais nas escolas".

E “quando Granada foi invadida pelos Estados Unidos em 1983, o Reino Unido não interveio", exemplificou, numa referência a um estado caribenho que tem agora Carlos III como chefe de Estado.

O debate em torno do legado colonial nos países da Commonwealth nestes dias após a morte de Isabel II contrasta com a quase unanimidade e louvor à rainha nos 'medias' britânicos na última semana, que sobre estas questões pouco mais dizem além de que durante o seu reinado as colónias "ganharam a independência", como sublinhou a colunista do The Guardian Afua Hirsh, uma jornalista e escritora filha de pai inglês e mãe do Gana.

A colunista acredita que, porém, passadas as cerimónias fúnebres e este período imediato após a morte de Isabel II, o Reino Unido vai enfrentar "a pesada tarefa de contar a verdade "porque "na semana passada, a Grã-Bretanha perdeu o luxo da negação duradoura, ao mesmo tempo que perdeu a sua Rainha".


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