Açoriano Oriental
No “Angra Dança esta Noite”
Dançar para fazer pensar

É um corpo entre corpos, num ato de vida e relação, já o sabemos desde o início quando observamos o cartaz ou vamos comprar o bilhete para o espetáculo. O que provavelmente não sabemos é que, este ano, o “Angra Dança esta Noite” levou ao palco flagelos da sociedade de hoje como a violência doméstica e as problemáticas relacionadas com o Clima e Ambiente. E foram as crianças e os jovens das escolas de dança da Terceira que lhes deram imagem corporal.


Autor: Sónia Bettencourt/AO Online

Num ano em que se somam mais de duas dezenas de mulheres mortas em Portugal em contexto de violência doméstica, segundo dados avançados pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), a organização do espetáculo “Angra Dança esta Noite” quis fazer valer o seu espaço em palco, ocupado há cinco edições no Centro Cultural e de Congressos da cidade, para dar literalmente corpo à causa.

“Trouxemos novamente a dança em grande ao Centro Cultural, mas o objetivo, este ano, através desta arte, era mesmo alertar as pessoas para questões importantes que dizem respeito a todos nós enquanto sociedade”, enfatiza Lara Costa, presidente da Academia de Dança Paulo Borges do Sport Clube Barbarense, entidade organizadora do evento, à conversa com o nosso jornal, após um espetáculo de duas horas que começou a dar os primeiros passos há vários meses, antes de 9 de novembro, para poder montar diversos cenários ligados aos temas centrais: violência doméstica e problemáticas relacionadas com o Clima e Ambiente. Nesse último com referência às espécies animais em extinção, à poluição nos mares e aos conflitos na Amazónia.

“A dança está a evoluir, a nossa paixão mantém-se, mas a dança também é um veículo que, como as restantes artes, pode e deve ser utilizado para sensibilizar o público do modo como foi feito aqui hoje, dando esperança ao mundo, especialmente às novas gerações”, reforça a responsável, referindo o exemplo dos jovens Rita Cota e Francisco Cota, o par de dançarinos da coreografia da violência doméstica, talvez “a mais complexa em termos de emoções”. “Foi especial e sentida por muita gente”, afirma. E acrescenta: “Somos uma escola e uma comunidade de dança. Essas preocupações também devem ser nossas”.

Ao longo de cinco anos, passaram por Angra do Heroísmo muitos nomes da linha da frente da dança desportiva, com a participação de pares nacionais e internacionais, sem esquecer a “prata da casa”.

Em 2019, destaque para Zia James e Petar Daskalov, campeões de dança do Reino Unido e da Europa e, ainda Elisabete Pera e Duarte Sousa, Anna Galysheva e Pedro Borralho, bem como Mariana Luís e o Grupo Latin Soul.

A animação musical ficou a cargo de Isaías Manhiça, músico português que ganhou outro reconhecimento depois de ter passado pelo concurso de televisão “The Voice Portugal”. “Este evento é muito mais do que preencher uma noite no calendário da animação cultural da cidade. Tem conteúdo, tem alma”, sublinha Lara Costa.


Dançar dentro e fora da pista

Nesta janela de expressão participaram seis das oito escolas de dança que existem atualmente na ilha Terceira, segundo a Associação de Dança Desportiva da Região Autónoma dos Açores (ADDRAA), reunindo 25 crianças e jovens no total, com treinos e coreografias a cargo de Pedro Borralho, Mariana Luís, Joana Silva e Lara Costa.

Nas palavras de Pedro Borralho que dá aulas na Terceira há algum tempo e participa no “Angra Dança esta Noite” pelo segundo ano, o talento encontra-se na ilha em porção considerável. “Há gente aqui com muito talento. Contudo, é preciso ainda mais conhecimento, desde a parte técnica – luzes e som - à performance, passando pela entrega à dança”, considera o coreógrafo, treinador de dança e diretor artístico português, com marcos no currículo como 11 vezes Campeão Nacional em danças standard.

“Espero que as pessoas tenham percebido, e sobretudo os pais das crianças e jovens, o que é que nós conseguimos fazer aqui esta noite. A dança, além de hobbie, pode ser uma profissão. E há que começar a sentir mais essa valorização da modalidade na Terceira”, desafia o profissional, tecendo elogios aos apoios públicos e privados disponíveis na Região para este género de evento, o que, revela, “não acontece assim no Continente”, e à dedicação de Lara Costa, da organização. “Estamos no bom caminho e a Lara está em todas as frentes. Tenho que lhe dar Parabéns e dizer que ela precisa de uma equipa maior”, avança.

Também Lara Costa partilha da visão de Pedro Borralho no que diz respeito ao trabalho na dança para ir ao encontro da profissionalização da modalidade nos Açores. “Queremos melhorar sempre. Acredito também ser este o caminho: manter a estrutura, dar mais formação em várias vertentes e profissionalizar”, assume a dirigente desportiva, referindo que, em matéria de casa de espetáculo, para acolhimento desta iniciativa, o Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo é o espaço ideal para todos. “Nos bastidores dizem-me que se sente o público aqui a vibrar de maneira diferente”, remata.


Jorge com samba no pé

Enquanto uns podem ter receio de deixar a ilha para prosseguir estudos superiores na área da dança, partindo de um olhar menos positivo quanto à sua sustentabilidade financeira, outros aos 14 anos de idade, já tomaram a sua decisão e, até, com o apoio dos próprios pais.

“Quero fazer disto a minha vida. Gosto de música e ritmo, então, há 8 anos, na hora de escolher uma modalidade optei pela dança desportiva”, conta Jorge Carrasqueira, a frequentar o 9.º ano de escolaridade, mas com as suas metas bem definidas. “Pretendo ir para Artes, depois sigo para Dança. Gosto de dançar, é uma forma de expressar os meus sentimentos. E o meu ritmo preferido é samba. O samba é mexido e permite descarregar as energias”, adianta o jovem nascido em Coimbra, filho de pai português e mãe ucraniana, radicados na Ilha Terceira há 11 anos.

“Não, não fiquei admirada da sua escolha. A personalidade dele é virada para Artes, por isso não achei estranho. Ele quer fazer da dança o seu futuro. Está sempre pronto a dançar. E já viu gente a desistir da modalidade, por várias razões, mas ele permanece”, destaca Mariya Tsyuk, mãe do potencial dançarino que participou no “Angra Dança esta Noite” pela terceira vez consecutiva, assumindo também o seu gosto pela dança desde os seus tempos de jovem na Ucrânia onde praticava a modalidade a nível amador.

Na Terceira, ilha onde chegou como turista e acabou residente, Mariya Tsyuk enaltece este evento anual que, no seu entender, “ajuda a perceber o que é a dança; ajuda a perceber que é cultura; e que, através da actividade física e das coreografias, cativa mais pessoas e os mais novos”.

Para Jorge Carrasqueira, o “Angra Dança esta Noite” traz aquela oportunidade de aprendizagem de elevado grau que não se tem todos os dias, perante uma plateia maior e sob a orientação de um profissional como o Pedro Borralho”.

Neste contexto, o coreógrafo incentiva os pais a deixar os seus filhos irem em busca dos seus sonhos, dentro ou fora da ilha. Porém, sublinha, sair do ninho e da zona de conforto para mais longe permitirá outro crescimento pessoal e profissional. “E, se calhar, depois, irão voltar à sua terra e desenvolver novos projectos. Os pais naturalmente vão ficar orgulhosos deles. Caso contrário, será mais complicado de evoluir”, diz.

Já a propósito de homens que praticam dança, o jovem luso-ucraniano confessa que alguns dos seus amigos consideram uma modalidade “mais indicada” para as meninas. Um ponto de vista que diz “discordar por completo”, pois a dança “deve ser compartilhada”.

Pedro Borralho confirma a existência deste estigma nos dias de hoje, o que na sua perspetiva “é desnecessário”. “A dança é um desporto para todos”, concretiza.


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