Autor: Nuno Martins Neves
O mundo está a atravessar um momento de viragem, a todos os níveis, e mesmo não sendo inédito, terá implicações para o futuro de todos os países. Esta pode ser uma das ilações retiradas do discurso do terceirense Miguel Monjardino na reflexão e debate promovido pela Associação Seniores de São Miguel, sob o tema “O que está a acontecer na política internacional? Primeiras implicações para os Açores”, que decorreu numa unidade hoteleira em Ponta Delgada.
O professor universitário de Geopolítica e Geoestratégia, colunista de política internacional e analista político-militar tentou fazer uma resenha do turbilhão que o planeta Terra está já a viver, baseando-se na leitura dos acontecimentos atuais, mas ancorado no passado.
Monjardino começou por desmistificar duas ideias - de que estamos a viver um momento único na história, por um lado; e a dificuldade em compreender a magnitude do que está a acontecer, por outro.
“Estamos a viver um momento especial, mas não é um momento único. Quem tem uma visão longa da trajetória da história, percebe perfeitamente que já houve momentos semelhantes ao nosso”, começou por dizer, acrescentando: “Daqui a 30 anos, quem aqui está perceberá melhor o que está agora a acontecer”.
Com isto, o analista nascido em Angra pretende explicar que, com humildade, devemos reconhecer que “nós não sabemos bem o que está a acontecer, não percebemos e temos dificuldade em descortinar, no meio do nevoeiro da história, o que realmente pode estar do lado de lá”.
No entanto, a “chave” pode estar no passado, na literatura que foi escrita em momentos de transição, tal como o que estamos a viver. Como os austríacos Stefan Zweig ou Joseph Roth, “e não é por acaso, pois foram autores que escreveram durante a desintegração do império austríaco e escreveram livros absolutamente extraordinários sobre o que é ser europeu na altura”.
E é com este poder de analisar o presente, sabendo o que aconteceu no passado, que Miguel Monjardino entende que “a ordem económica internacional, que nós conhecemos e que foi construída sobretudo pelos Estados Unidos da América (EUA) e os seus aliados europeus, está a chegar ao fim”.
Um final que deriva dos “desequilíbrios comerciais e financeiros, em termos internacionais” que atingiram tal magnitude que são “insustentáveis do ponto político, em alguns países”.
À plateia, Monjardino trouxe à colação a cimeira de
Angra, em 1971, entre o presidente francês Georges Pompidou e o seu
homólogo norte-americano RichardNixon, quando se deu o início do fim do
sistema de intercâmbio financeiro internacional que vigorava desde
1944 (o sistema Bretton Woods), com a passagem do padrão ouro para o
padrão dólar.
“E muito do que está a ser dito sobre a Administração Trump, foi dito em 1971. E muito do que Donald Trump diz da Europa, foi dito em 1971 pelo Secretário do Tesouro norte-americano de então”, recorda Monjardino.
Mas se nessa altura foi possível chegar-se a uma solução para um acordo de reequilíbrio das taxas de câmbio internacionais, o analista não vê o mesmo a acontecer agora. “Hoje em dia, com a China e muitos outros países integrados na economia internacional, do meu ponto de vista será muito mais difícil conseguir um acordo desse tipo”.
E acrescenta: “Nós estamos a caminho de uma ecologia económico-financeira que, do meu ponto de vista, será bastante diferente daquela que nós temos agora. O que nós não conseguimos descortinar é qual é a solução política para este problema”.
No segundo ponto levantado na reflexão, o professor universitário abordou a política interna nas sociedades e como “estamos a chegar a um momento em que, nas sociedades das repúblicas democráticas e nas monarquias constitucionais, as divisões em termos de educação, produtividade, nível de vida, expectativas e oportunidades são muito, muito grandes”.
A ideia de que as instituições e os regimes democráticos estão a chegar ao fim e que é necessário derrubá-las para criar algo novo está a varrer grande parte do mundo ocidental - em grande parte dos países europeus, nos EUA, mas não no Canadá, explica o analista -, verificando-se “um ataque sistemático às principais instituições das repúblicas democráticas. E isso não acontece por acaso”.
Mais uma vez, Monjardino relembra que é algo que já aconteceu no passado, recordando Tácito e a passagem da República Romana para o Império Romano.
“Estamos, do meu ponto de vista, a ver profundas divisões na ordem política e interna, em praticamente todos os países europeus e, do meu ponto de vista, isto deve-se a uma insatisfação muito grande dos eleitorados pelo funcionamento das nossas instituições democráticas e, no fim de vida, das expectativas pelo nível de vida, que as pessoas têm”.
Para Miguel Monjardino, o mundo atravessa, também, um “combate ferocíssimo” ao nível da Ciência e Tecnologia, que no seu entendimento “vai intensificar-se”, entre quem tem e quem desenvolve e aplica as tecnologias mais avançadas.
De tal forma que considera que estamos a caminho de uma “bifurcação” em termos de sistemas tecnológicos e as suas normas técnicas.
“Nós hoje, ainda hoje, independentemente dos países que visitemos no mundo, o ecossistema tecnológico é praticamente igual para todos nós. Um telemóvel aqui funciona da mesma maneira no outro país”, começa por dizer.
“Mas essa tecnologia que usamos vem de um determinado país: é provável que no espaço de cinco, 10 anos, eu não sei se nós não caminharemos para uma situação bastante diferente, em que os países - e isto vai ser muito interessante para Portugal e para muitos países europeus, que é um dos grandes dilemas que vamos ter - vão ter de decidir em que ecossistema tecnológico nós europeus, portugueses e açorianos, vamos ficar. E convém que nós não nos enganemos na escolha”.
Uma escolha importante pois, alerta, caso seja mal feita, pode ter consequências políticas.
“Há 10 anos, qualquer decisão ao nível científico-tecnológico, que eu me lembre, não era uma preocupação do Primeiro-Ministro. Era uma questão técnica. Hoje em dia não é e cada vez será e terá impacto na política científica de uma região autónoma como a nossa, do país e da União Europeia. Em que áreas vale mesmo a pena investir e que preço estamos dispostos a pagar para ter alguma autonomia em termos de sistemas tecnológicos em áreas mais avançadas a nível mundial”.
Com a
“bifurcação”a caminho e em passo acelerado, Miguel Monjardino assume
que Portugal “terá de considerar muito bem o que quer fazer com os
recursos que temos nessas áreas e como é que os vamos aplicar”.
Até porque, acrescenta, “nós estamos a viver hoje verdadeiras situações de embargo científico-tecnológicos. Já estamos a viver, por exemplo, os EUA e alguns dos seus aliados europeus, a não aceitarem transferir quer conhecimento, quer tecnologias para a China, para a Rússia, por exemplo. E os chineses estão a fazer exatamente a mesma coisa. Estamos a viver situações dos primeiros embargos em relação a certos tipos de matérias-primas e recursos, que são essenciais para as aplicações científico-tecnológicas”.
As mudanças em curso também têm impacto no xadrez geoestratégico mundial, que “por agora”, deixa os Açores de fora. Monjardino assinala a mudança de posicionamento dos EUA, pela mão da Administração Trump (mas que o especialista entende que será seguido pelas futuras administrações, independentemente do partido no poder na Casa Branca).
“Todos nós nesta sala, somos o produto de uma época em que os EUA viram a sua hegemonia do ponto de vista dos benefícios dessa hegemonia. Não é que os EUA não tivessem consciência dos custos dessa hegemonia: mas as vantagens eram consideradas muito superiores aos custos. O mundo em que vivemos, em Portugal, nos Açores, tudo o que nós temos a nível económico, social e político, deriva dessa avaliação norte-americana. Essa avaliação, como sabemos, mudou. Esta Administração norte-americana tenderá, do meu ponto de vista, por razões de política interna, a prestar mais atenção aos custos dessa hegemonia. E isso levará a uma alteração estrutural das estratégias norte-americanas para as próximas décadas”.
Concentrando os recursos numa conceção geoestratégica, o hemisfério ocidental, que começa na Gronelândia, passa pelo norte do Canadá até ao Canal do Panamá, e indo das ilhas Aleutas ao arquipélago do Havai.
“E isto, como estamos a ver, terá enormes consequências na relação de Washington com os seus aliados, quem são os aliados, como é que esse relacionamento se processa. E veremos, neste processo de reorganização, uma coisa que nos choca e que já tínhamos esquecido - mas por isso é que a história é útil - que é o exercício brutal do poder”, reconhece.
O poder exercido de forma benigna, ao abrigo do direito internacional está a ser substituído, explica, que é algo que acontece em períodos de transição, como os que estamos a viver.
A finalizar, o analista político avisa que Portugal e os Açores vão sofrer um “choque estratégico externo”, que forçará o país e todas as alianças estabelecidas a um processo de adaptação “que pode ser mais ou menos difícil, em função da rapidez com que o ecossistema se adaptar à realidade do amanhã”.
Será um choque distinto do choque interno que o país teve com o 25 de Abril e com o que se sucedeu - que permitiu aos Açores negociar um regime que lhe fosse mais favorável” - e que coloca os políticos em função perante um dilema, explica Monjardino.
“Falar claramente disto às pessoas e explicar
que, numa fase inicial isto terá um preço, um custo político em termos
de ajustamento, provavelmente que será considerado um suicídio político,
principalmente em ano de eleições. Mas não o fazer, terá um custo ainda
maior, porque a sociedade viverá anestesiada, acreditando que vive num
período histórico que já terminou, e acreditando firmemente que não há
nenhum preço a pagar por isto que está a acontecer”.