Açoriano Oriental
As mulheres no “Botequim” da jornalista açoriana Sara de Melo Rocha

O “Botequim” é um podcast moderado pela jornalista terceirense Sara de Melo Rocha. O programa da TSF nasceu na Pandemia e discute o papel das mulheres nas mais diversas áreas.



Autor: Tatiana Ourique / Açoriano Oriental

Sara de Melo Rocha é licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Fez mestrado em jornalismo internacional na Dinamarca e na Holanda. Começou pela rádio TSF em 2007. Seguiu carreira na Antena 1 Açores até 2011, altura em que se mudou para a Dinamarca e, mais tarde, para a Holanda para fazer um mestrado em Jornalismo Internacional. Depois do mestrado, viveu em Berlim, onde foi correspondente da agência LUSA e trabalhou como jornalista na Ruptly TV, uma agência de notícias internacional em vídeo. Regressou a Portugal em 2017, voltando à casa-mãe, a rádio TSF.
Foi distinguida com o Prémio de Jornalismo do Parlamento Europeu na categoria de rádio em 2011, recebeu uma menção honrosa do prémio ANMP de Jornalismo e Poder Local e em 2021 recebeu uma menção honrosa do prémio Corações Capazes de Construir na categoria jornalismo, atribuído pela Associação Corações Com Coroa, com a reportagem “As cartas que nunca escrevi”.
Sara Rocha passou pelos campos de refugiados da Grécia, pelas convenções norte-americanas e assistiu em direto à chegada do Brexit. Cobriu os ataques terroristas em Bruxelas, viajou até Moçambique para conhecer os elefantes da Gorongosa e entrevistou antigos madeireiros ilegais na Amazónia. Interessa-se “por notícias do mundo e do fim da rua, desde que sejam histórias com gente lá dentro”.

 

Açoriano Oriental - Como surge este podcast, o “Botequim”?


Sara Rocha - Este podcast é filho da pandemia. Durante o primeiro confinamento, tive mais tempo para pensar em novos projetos. A vontade de ouvir e de escrever sobre mulheres já existia há muito, mas só depois de abrandar, é que se começou a formar algo mais concreto. Queria ouvir mulheres de vários setores e de diferentes contextos para perceber quais os desafios reais que enfrentam. O objetivo do programa é abordar vários assuntos sob a perspetiva delas. A base do programa é o diálogo e a escuta. Ou seja, queremos discutir desafios relacionados com a igualdade de género, através de entrevistas, conversas e histórias de mulheres que marcam a diferença. São episódios longos que nem sempre se conseguem ouvir e uma só vez. É para consumir devagar.


AO - Quais foram os temas abordados até agora?

S.R.- Começamos pelos setores de trabalho – mulheres na política, nas Forças Armadas, no futebol, na Academia, na Justiça, nos Media, na tecnologia. Mas também nos interessa olhar para a mulher do ponto de vista mais social. Por essa razão, falamos também sobre a mulher negra, a mulher cigana, a imigrante, mulheres trans, as mães, as que não querem ser mães. Depois abrimos o tema para coisas mais teóricas como a mulher e a corrupção, a covid-19, a mulher e a religião.

AO - Este Botequim já recebeu inúmeras convidadas ilustres. Pode destacar algumas?
S.R - Desde atrizes, músicas, políticas – já tivemos mais de 80 mulheres no Botequim. Houve um programa sobre as mulheres candidatas à Presidência da República com Ana Gomes e Marisa Matias. No episódio sobre cinema contámos com a realizadora Cláudia Varejão, no programa sobre o teatro tivemos a atriz Sara Barros Leitão. No humor contámos com a guionista Cátia Domingues e com a humorista terceirense Carlota da Internet. Na literatura contamos com a Dulce Maria Cardoso e com a Joana Bértholo. Na música, participaram a Carolina Deslandes, Mísia, Lena d’Água, Blaya e Capicua.

AO - Momentos que a tenham marcado nas gravações destes episódios?
S.R. - Os programas que mais me marcaram foram o da mulher negra, da mulher cigana e da mulher trans, sobretudo porque me ensinaram muita coisa, trouxeram-me novas perspetivas, um olhar mais empático para as dificuldades destas mulheres. No fundo, permitiram-me conversar de forma profunda com pessoas com quem normalmente não teria possibilidade de o fazer, sobre temas que são tabu e que levantam sempre muitas sobrancelhas. Tive ali mulheres disponíveis para contar-me como fazem a sua vida e como essa vida tem muitos obstáculos.

AO - Aspetos curiosas que tenha aprendido?
S.R.- Tenho aprendido muito sobre feminismo e de como há muitas ideias erradas sobre este conceito. Há uma ideia geral de que feminismo é o aposto de machismo, ou seja, de que seria algo contra os homens. Esta é uma ideia errada. O feminismo é contra sistemas sociais que beneficiam um género em detrimento de outro. Ou seja, defende a equidade entre géneros. E o que é que isto significa? Que as mulheres devem começar a trabalhar nas obras se querem ser iguais aos homens? Não necessariamente, mas quer dizer que devem poder fazê-lo se assim o entenderem e desejarem.



AO - O machismo é transversal a todas as áreas em igual proporção ou há contextos mais machistas do que outros?
S.R. - Temos percebido no Botequim que o machismo é transversal em todas as áreas sociais, profissionais, familiares. Começa logo bem cedo na cor da roupa do bebé, nos brinquedos que entregamos às nossas crianças – os meninos são educados para serem aventureiros, para usarem o intelecto através da construção de legos e resolução de problemas, enquanto as meninas são empurradas para as brincadeiras do cuidado, da cozinha, pouco estimulantes para a sua capacidade de raciocínio. Depois continua ao longo do processo educativo dos jovens – eles são encaminhados para carreiras técnicas (e bem pagas) e elas são socializadas para escolherem carreiras que serão melhores para a família (normalmente menos bem remuneradas). Depois surgem as perguntas do “quando te casas?”, “para quando um bebé?”, se “ele ajuda lá em casa?”, partindo do princípio que é a mulher a tratar dos afazeres da casa.
Claro que o machismo extremo é algo fácil de detetar. Por exemplo, mulheres impedidas de votar ou de conduzir. Mas há depois o sexismo subtil que nos acompanha a todos ao longo da vida - a mulher recebe salários inferiores ao homem pelo mesmo trabalho, tem empregos culturalmente desvalorizados, é responsável pela maior parte das tarefas domésticas, está sujeita a padrões de beleza irreais que não são exigidos aos homens.
Vivemos numa sociedade em que pertencer a um determinado género – feminino ou masculino – não é propriamente irrelevante e o Botequim quer entender essas diferenças. Há mulheres a falar de todos os assuntos, desde política, ciência, economia. Elas têm muito para dizer, simplesmente têm menos espaço para fazê-lo. E nós, que fazemos parte dos media, temos o poder de lhes dar espaço.


AO -Como é que a TSF acolheu esta sugestão? Como está a ser o feedback deste projeto?

S.R. - A TSF acolheu bem a ideia até porque o tema da igualdade de género está na ordem do dia mas ainda não havia nada concreto para trabalhar o assunto de forma mais profunda na rádio. Em termos de feedback de ouvintes, até agora tem sido muito positivo. Recebo muitos emails e mensagens, os ouvintes dizem aprender muita coisa e começam a colocar muitas questões em perspetiva, olhando para alguns momentos do dia-a-dia com mais empatia. E não são só mulheres. Já recebi emails de ouvintes homens que acompanham o programa, até na companhia das mulheres para depois debaterem o tema em família. Também sei que o podcast está a ser usado como base bibliográfica para um mestrado sobre igualdade de género a nível empresarial. É também usado por uma professora de português para estrangeiros, como forma de ensinar a língua e discutir temas da atualidade. É muito bom saber que o programa permite essa troca de perspetivas. Também tive uma ouvinte que me disse sentir-se capaz de mudar o mundo no fim de cada episódio. E outras ouvintes que agradecem o programa porque se sentem silenciadas quando abordam o tema da igualdade de género nos seus contextos. Dizem que o podcast as ajuda a confirmar que as coisas não estão bem e que elas não são as únicas a pensar assim.  Sabe muito bem ler estes emails.  

 

AO – Porque é que acha que ainda é preciso abordar a igualdade de género na esfera pública?

S.R. - O género é visto como um discurso sobre as diferenças sexuais entre homens e mulheres – sobre a realidade biológica de cada pessoa - mas vai muito para além disto. O que temos vindo a perceber no Botequim é que o debate não se refere apenas às ideias e formas de estar de cada género mas também à forma como as instituições, as estruturas, as famílias e as práticas do dia-a-dia olham e tratam cada género.
Para muitas pessoas, discutir este tema parece algo desatualizado, como se não fizesse sentido porque já vemos mulheres em muitos cargos e profissões que antes seria impensável. Vemos mulheres a liderar empresas, câmaras municipais, ministérios e governos. “O que é que elas querem mais?” Contudo, quando remexemos na questão, percebemos que essa evolução ainda tem um longo caminho a percorrer. As mulheres continuam a ganhar menos do que os homens, continuam a fazer a maioria do trabalho em casa e com os filhos, continuam a estar em maior número no fundo de desemprego, têm menos espaço para crescer a nível profissional, são a esmagadora maioria das vítimas de violência doméstica. “Como assim as mulheres ganham menos do que os homens?”; “Como assim as advogadas não têm direito a licença de maternidade?”, “Como assim as mulheres são despedidas por estarem grávidas?”. Os ouvintes vão percebendo que estas questões são reais e estão a acontecer a mulheres iguais a todas nós em pleno século XXI.



AO - Como considera que podemos contribuir para um mundo com maior igualdade de género?

S.R. - Mudar preconceitos é moroso, alterar maneiras de ver a forma de viver em sociedade é difícil. Mas esta consciência, uma vez despertada, dificilmente desaparece. É através das discussões e do espaço para análise que vamos fazendo esse caminho. É dando palco a vozes de mulheres que não ouvimos no dia-a-dia que contribuímos para a representatividade de pessoas que normalmente estão mais apagadas. Além da discussão propriamente dita, há medidas concretas que os governos e as entidades podem pôr em prática. Um exemplo é o sistema de quotas que, mesmo não sendo o ideal, está a funcionar em alguns setores. Por exemplo a nova lei da paridade em titulares de cargos políticos estabelece uma representação mínima de 40% de cada género. Antes era de 33%. Se o sistema de quotas é o ideal? Talvez não, mas se podemos fazer em 5 anos, algo que levaria décadas a ser atingido, porque não avançar com este tipo de medida? Não sei se se pode aplicar a todos os setores, mas há muitas áreas que beneficiariam de um sistema de quotas.


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