Açoriano Oriental
"O Mundo lá fora não sabe língua gestual"
Num recanto do pátio, junto ao campo de futebol, os meninos surdos brincam isolados das outras crianças. Numa escola preparada para acolher "alunos especiais" e tentar "misturá-los" com os restantes, o dia-a-dia é um desafio constante para as professoras que ensinam através da língua gestual, da mímica ou da leitura dos lábios.
"O Mundo lá fora não sabe língua gestual"

Autor: Lusa / AO online

No centro de Lisboa, 25 crianças surdas do primeiro ciclo travam uma luta diária para atingir o que nove colegas já conseguiram: ter aulas com os "meninos ouvintes".

No Pólo da Unidade de Apoio Educativo a Alunos Surdos da Escola Básica com Jardim de Infância número 120, nas Laranjeiras, 46 crianças com problemas de audição aprendem com educadores especializados, formadores de Língua Gestual Portuguesa e terapeutas da fala.

"No final de cada ano lectivo, os professores e os técnicos podem considerar que a criança está preparada para a integração no ensino regular. Por vezes não se adaptam, porque é muito puxado para eles", explica Lurdes Rosa, professora de ensino especial.

"Mas nunca é um processo definitivo. Às vezes chegamos à conclusão de que não resulta e acabam mesmo por regressar", acrescenta a docente na véspera do Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa (LGP), que se assinala quinta-feira, e que este ano celebra o 10º aniversário do reconhecimento da LGP na Constituição da República como a língua natural da comunidade surda.

Segundo Graça Duarte, uma das terapeutas da fala, as crianças surdas trabalham bastante porque há adaptações curriculares e é delineado uma plano individual tendo em conta as capacidades, competências e complexidades de cada uma.

Ao contrário dos alunos "ouvintes", que têm apenas cinco horas de aulas por dia, os surdos, quer estejam integrados ou não, têm uma carga horária de nove horas, verdadeiros "trabalhos forçados".

"Não vale a pena fazer floreados porque o aluno surdo revela dificuldade na selecção de informação importante. Por outro lado, por não ouvir, desliga facilmente da aula, a não ser que o professor esteja a olhar directamente para ele", conta.

Apesar da deficiência auditiva, os surdos revelam normalmente um gosto especial pelas artes e muita inteligência. Uma das alunas, conta a professora Lurdes com um sorriso, desliga o aparelho cada vez que a mãe se zanga com ela.

"Já agora vamos lá tirar partido de ser surdo...", brinca a professora.

Para o professor do ensino regular pode ser "complicado" acolher na sua turma uma ou duas crianças surdas. Para ajudar, os docentes recebem formação e são aconselhados pelos colegas.

Deve-se falar sempre de frente para a criança, devagar e claramente, utilizando frases simples. Deve-se ainda usar a escrita no quadro, no caderno e muitos estímulos visuais para assegurar que a criança recebeu a informação.

"Procuramos desenvolver a comunicação da melhor forma possível e isso implica seleccionar o modo de comunicar para o qual cada criança tem mais apetência. Uma pode ter mais apetência para comunicar através da leitura labial ou através da escrita... porque o mundo lá fora não sabe língua gestual", diz Graça Duarte, terapeuta da fala desde 1984.

Durante o recreio, os alunos surdos brincam todos juntos, longe das outras crianças. Apesar disso, uma das funcionárias assegura que todos os alunos costumam ter brincadeiras em comum e, com o convívio, os não surdos até pedem para aprender língua gestual.

"Eu gosto muito de brincar com eles e até fazemos ginástica juntos", conta uma das meninas não surdas, exemplificando, orgulhosa, os gestos que já sabe fazer, como "desculpa", "obrigado", "trabalhar" e "triste".

Depois do intervalo, numa das salas só de surdos do jardim-de-infância, quatro raparigas com aparelhos auditivos ou implantes directamente ligados ao cérebro estimulam a língua gestual e a associação entre as palavras e o seu significado.

Numa outra, também do jardim-de-infância, cinco crianças brincam com fantoches. Cada uma escolhe um, identifica-o, e depois, cada uma ao seu estilo, reproduz o som do respectivo animal, estimulando a oralidade e não só.

"Desenvolvem os gestos, a oralidade, associam os sons aos animais, mas também estão a aprender a brincar", diz Ana Moreira, professora especializada em problemas motores e cognitivos.

Já no primeiro ciclo, os alunos surdos começam o dia a escrever e a dizer a data, o abecedário, o nome e a corrigir os trabalhos de casa. De seguida, a professora Lurdes propõe um texto sobre a visita da Lusa à escola.

"Hoje vieram à escola dois jornalistas", escreve no quadro uma das alunas, de 12 anos, com a ajuda dos colegas e da professora. Depois, tem de sublinhar a vermelho os verbos, a azul os nomes e a verde os adjectivos. "Ajuda a entenderem as palavras-chave das frases", explica a docente.

"Um surdo moderado consegue ter uma produção da oralidade muito boa. O mesmo não acontece com um aluno com grau de surdez severo. Em relação aos profundos é preciso muito trabalho para desenvolver essa capacidade", diz Lurdes Rosa.

Segundo a professora, é necessário uma família, uma escola, professores e amigos "excepcionais" para que a criança comece a desenvolver desde cedo capacidade e apetência para a comunicação, contornando o facto de viver no mundo do silêncio. Nem sempre isso é fácil, até pela atitude dos pais.

"As crianças que têm pais igualmente surdos desenvolvem desde logo outras formas de comunicação como a língua gestual, que acaba por ser a língua materna. No entanto, há pais não surdos que proíbem em casa os gestos porque ainda acreditam que a criança irá desenvolver uma oralidade perceptível. Só estão a atrasar a sua aprendizagem", lamenta Graça Duarte, umas das terapeutas da fala da escola.

Para a professora Francelina de Sousa, do ensino regular do 1º ciclo, a aluna surda de sete anos que tem entre os seus meninos "ouvintes" da 2ª classe é um caso "de sucesso".

"É uma criança muito interessada, persistente e muito acompanhada pela mãe. Isso é fundamental na aprendizagem e ainda mais quando se trata de uma menina surda. Quando tem alguma dúvida, porque tem algumas lacunas de vocabulário, levanta-se, vem ter comigo, e não desiste enquanto não entende", conta a docente.

Apesar de admitirem que por vezes é uma forma de ensinar um pouco desgastante, as professoras de ensino especial desta escola reconhecem que todos os dias são surpreendidos pelos progressos dos alunos, sendo esse o prazer de enfrentar mais um dia de trabalho.

"São crianças com potencialidades cognitivas muito boas que nos desafiam e surpreendem todos os dias", diz, com um sorriso, Graça Duarte.
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