Açoriano Oriental
“Isolamento das ilhas ao longo dos séculos gerou especificidades que garantem expressões culturais únicas”

Maria José Lemos Duarte. Natural de Ponta Delgada, construiu uma carreira na área da cultura. Atualmente presidente do Teatro Micaelense, partilha memórias da infância, reflexões sobre a identidade açoriana e a sua trajetória profissional e política


“Isolamento das ilhas ao longo dos séculos gerou especificidades que garantem expressões culturais únicas”

Autor: Ana Carvalho Melo

Natural de Ponta Delgada, com uma carreira centrada na cultura, Maria José Lemos Duarte confessa que a sua motivação é “sentir o pulsar das pessoas”, enquanto lhes permite aceder às mais diversas formas de manifestação cultural.

“A cultura açoriana está profundamente marcada pela nossa condição arquipelágica. Vivemos em ilhas no meio do Atlântico, entre dois continentes, e esta situação determina a nossa identidade cultural e a nossa açorianidade. O isolamento a que as ilhas foram votadas ao longo de séculos conferiu-nos especificidades que nos diferenciam umas das outras, o que é positivo, porque nos garante expressões culturais únicas”, afirma a atual presidente do conselho de administração do Teatro Micaelense.

Recuando à sua infância, Maria José Lemos Duarte recorda a liberdade que lhe foi permitida, assim como a ávida leitora que sempre foi. “Desde que me lembro, tenho um enorme gosto pelos livros e pela leitura, e costumo dizer que este gosto se deveu em grande parte ao meu pai, mas também a algum isolamento e à falta de oferta para ocupar os meus tempos livres”, lembra.

Maria José Lemos Duarte conta que, enquanto frequentava a escola primária, só tinha aulas de manhã, ficando com as tardes livres para brincar ao ar livre no jardim de sua casa ou da sua avó paterna, quando o tempo permitia. Mas também lia, começando pelos livros da Anita, da coleção Formiguinha e do Tonecas, que comprava com o dinheiro que a avó lhe dava. Este gosto foi evoluindo à medida que crescia, para as coleções Os Cinco, O Colégio das Quatro Torres e As Gémeas. “Em Os Cinco, havia uma personagem, a Zé, com a qual me identificava imenso, porque sempre fui meio arrapazada. Detestava brincar com bonecas, gostava de subir árvores, andar de bicicleta e até obrigava a minha irmã e os meus pais a tratarem-me por Zé, não queria ser Zezinha”, relata.

E ao falar de todas estas memórias de infância, Maria José confessa que o seu maior arrependimento foi não ter conseguido proporcionar aos seus filhos uma infância livre como a sua.

À medida que cresceu, começou a interessar-se por outro tipo de leituras, sendo o pai a acompanhá-la neste gosto, oferecendo-lhe livros que a marcaram profundamente. “No Natal de 1975, o meu pai ofereceu-me ‘Uma Viagem ao Mundo da Droga’, que me marcou muito e me criou alguns anticorpos perante a droga”, recorda.

Numa casa onde o seu pai também era um ávido leitor, com uma biblioteca repleta de obras literárias, algumas das quais proibidas à jovem Maria José, ela explorou o mundo através da literatura. “O meu pai sempre me incentivou a ler e ofereceu-me livros muito bons, mas havia livros que ele não queria que lêssemos, guardados à chave numa estante. Uma vez, numa reunião de amigos em casa, ouvi falarem sobre o livro ‘Amores da Cadela Pura’, da marquesa Margarida Vitória Jácome Correia, e fui procurar o livro na estante fechada. Andei até descobrir onde estava a chave e, nas férias, li o livro todo. Acabei por ler quase todos os livros da estante, e o meu pai nunca soube”, conta.

Revela ainda que o primeiro livro de poesia que leu era da autoria do seu bisavô, Humberto de Bettencourt, intitulado “Ilha Nova e Outras Rimas Esparsas”. Hoje, a vida não lhe permite ler com tanta avidez, mas continua a ser um hábito.

Mais tarde, quando finalizou o ensino secundário, a jovem Maria José não quis sair dos Açores para prosseguir estudos superiores, tendo, contra a vontade dos pais, se inscrito num curso profissional de Hotelaria e Receção na Escola Profissional das Capelas. Estagiou no Hotel Faial, trabalhou no Hotel Bahia Palace quando este abriu e no Hotel Gaivota. “Mas desisti, vi que não era para mim. Foi então que concorri à Escola de Enfermagem, mas no final do primeiro ano comecei a pensar que também não era para mim. Concorri para a contabilidade da SATA, mas também não fiquei lá, até que abriu um concurso para técnica de exploração postal nos Correios, onde trabalhei nos recursos humanos durante seis anos”, descreve.

Já a trabalhar nos Correios, Maria José Lemos Duarte casou-se e foi nessa altura que decidiu também tirar a licenciatura em História na Universidade dos Açores. “Sou obstinada e tenho muita força de vontade. Fazia o percurso entre os Correios e a Universidade, às vezes quatro vezes por dia, a pé. Concluí o curso em quatro anos e depois fiz uma pós-graduação em Ciências Documentais na área de Bibliotecas, tendo nessa altura aberto um concurso para a Casa da Cultura de Ponta Delgada”, recorda.

Iniciou a atividade na Casa da Cultura de Ponta Delgada, que mais tarde passou a chamar-se Casa da Cultura de São Miguel, em 1993, tendo em 1996 assumido o cargo de diretora, posição que ocupou até 2001. “Quando saí da Casa da Cultura, fizeram-me um jantar de homenagem na Academia das Artes, que teve muito significado para mim, dados os testemunhos que ouvi nesse dia sobre o meu trabalho, que me deram consciência do bom trabalho que tinha realizado”, destaca.

Na Casa da Cultura de São Miguel, Maria José Lemos Duarte e a sua equipa promoveram ações pedagógicas junto das escolas do primeiro ciclo, através de concertos pedagógicos, bailados e atividades com o Coro do Colégio de São Francisco Xavier, concertos de jazz no estabelecimento prisional e exposições itinerantes de arte contemporânea nos diversos concelhos da ilha e de Angra do Heroísmo e da Horta.

Em 2001, já depois de ter deixado o cargo de diretora da Casa da Cultura de São Miguel, passou pelo Museu Carlos Machado, tendo no entanto regressado à Casa da Cultura. Em 2004, foi convidada para integrar a lista do PSD nas eleições legislativas regionais, tendo vindo a desempenhar a função de deputada regional. “Na Assembleia Legislativa Regional, integrei a Comissão de Assuntos Sociais, que agrega a cultura, e continuei a defender a nossa cultura. Mas não gostei, porque as nossas intervenções, na oposição, são verdadeiramente autistas”, afirma.

Terminada esta fase da sua vida, trabalhou na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, na área de periódicos, dado que entretanto as Casas da Cultura já tinham sido extintas. Em 2017, regressou à vida política, agora como vereadora da Câmara Municipal de Ponta Delgada, com a tutela da cultura, ação social, turismo, bem-estar animal e saúde pública, cargo que ocupou até 2020, tendo nesse mesmo ano assumido o cargo de vice-presidente durante três meses e depois o lugar de presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada.

Atualmente, Maria José Lemos Duarte é a presidente da administração do Teatro Micaelense. “Gosto muito de estar aqui porque fazemos as coisas acontecer, tendo em atenção o diverso público que nos visita, desde os mais novos ao público sénior. Para mim, é extremamente gratificante ver as salas cheias, ainda que umas mais cheias do que outras”, afirmou, realçando que conta com “uma equipa excelente, coesa e trabalhadora”.

Do trabalho realizado nesta casa de espetáculos, Maria José Lemos Duarte destaca o desenvolvido pelo Serviço Educativo, que abrange desde crianças a partir dos três anos até seniores. “É um trabalho muito gratificante, pelo contributo que proporcionamos na formação de novos públicos. Nas escolas, há miúdos que vêm cá pela primeira vez”, enfatiza.

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