Açoriano Oriental
"Há muita gente que a única coisa que lê são legendas", diz Teresa Ribeiro, tradutora audiovisual

Maria Teresa da Silva Ribeiro ingressou no mercado de trabalho através de colaboração com o jornal terceirense Diário Insular. Foi aí que aperfeiçoou o português ainda com 16 anos. A experiência viria a ser-lhe preciosa no exercício da sua profissão, depois de ingressar mais tarde na universidade, aos 27 anos.
Hoje a tradutora audiovisual já conta no currículo com traduções de séries de renome e é colaboradora assídua do Departamento de Tradução e Legendagem da RTP.

Em entrevista ao Açoriano Oriental, a tradutora de 50 anos fala de um percurso mais atípico e explicou o processo de legendar os filmes na era das cassetes em VHS.

"Há muita gente que a única coisa que lê são legendas", diz Teresa Ribeiro, tradutora audiovisual

Autor: AO Online

Açoriano Oriental - Tem um percurso atípico em termos de formação académica. Viveu no Porto e decide regressar aos Açores em 2013 para fixar amarras. Como foi, em traços gerais, o seu caminho na tradução?

O meu primeiro contacto com trabalho remunerado foi aos 16 anos, nos primórdios do programa OTL, tendo ido para o “Diário Insular” escrever umas coisinhas. Passei lá os meus verões de estudante e, terminado o 12º ano, fui passar um ano na Bélgica, como estudante AFS-Intercultura. À vinda, aceitou-me o “Diário Insular” como membro da equipa a tempo inteiro e aí escrevi sobre música e cinema e paginei jornais até 1995, altura em que, já “velhota” (com 27 anos) resolvi ir, finalmente, tirar um curso na FLUP (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), com a ajuda dos meus pais e dos empregos que fui tendo enquanto estudante (escriturária na empresa alemã Hoechst, guia das visitas VIP às Caves Sandeman).

O estágio do curso de Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Franceses e Ingleses (Ramo de Tradução) foi realizado no Departamento de Turismo da Câmara Municipal do Porto, que me contratou, posteriormente, como Técnica Superior de Tradução durante dois anos.

Mas como a paixão era mesmo a TAV (tradução audiovisual), surgiu a possibilidade de realizar uma pós-graduação em Tradução para Legendagem, ministrada no antigo ISAI (Instituto Superior de Assistentes e Intérpretes) do Porto, pela Dra. Teresa Sustelo, responsável pelo Departamento de Tradução e Legendagem da RTP. Quis o destino que ela visse em mim as qualidades necessárias para ser uma boa tradutora e deu-me os meus primeiros trabalhos, há já quase 15 anos. Curiosamente, em 2010, fui também sua assistente, lecionando com ela a pós-graduação em Tradução para Legendagem no ISAI.


AO- Quando é que olhou para a tradução como carreira e particularmente a tradução audiovisual?

Sou apologista de se escolher a profissão que realmente se gosta, mesmo havendo outras mais seguras, mais constantes e mais bem remuneradas, pois os momentos menos bons serão sempre recompensados com a certeza de que se está a dar o nosso melhor a um trabalho que nos enche as medidas e, logo, se transforma num prazer.

Tive a sorte de ter uns pais que sempre me incentivaram, e aos meus irmãos, a ler, ouvir música e ir ao cinema, e vivi rodeada de livros, discos e filmes. Passei férias no Canadá e nos Estados Unidos com oito e dez anos e já vim de lá a falar inglês, percebendo que tinha jeito para as línguas. Juntando as duas coisas, depressa dei por mim a tentar traduzir as letras das canções que ouvia e sempre que ia com o meu irmão ao cinema, pela adolescência fora, lia com admiração o nome do tradutor do filme.

Assim, quando resolvi aventurar-me, finalmente, na vida universitária, a escolha de curso há muito que estava decidida. Munida do tal jeito para as línguas e para a escrita, apurado durante oito anos no “Diário Insular”, e de alguma experiência de vida, decidi-me a esperar que sendo bem-sucedida no curso, o resto viria por acréscimo.


AO - Como é que se estabelecem contactos para entrar neste mercado de trabalho?

Tive a sorte de entrar logo pela porta grande. Como a responsável pelo Departamento de Tradução da RTP já me conhecia e às minhas capacidades, pois tinha sido minha professora, uma vez proposta a colaboração, foi de imediato aceite. Enviei o CV para várias empresas de tradução e acabei, também, por trabalhar com as principais. Quando se consegue, realmente, entrar, depois é tudo uma questão de mostrar um bom trabalho e ter alguma sorte.

AO - Se tivesse regressado imediatamente à Terceira depois da faculdade acha que seria uma referência na tradução nacional?

Na tradução audiovisual, não. Mais que não seja porque, inicialmente, a maioria das empresas (RTP incluída), ainda trabalhava com cassetes VHS que tinham de se ir buscar e devolver. Ia semanalmente a Lisboa de comboio buscar trabalho e cheguei a trazer séries inteiras de uma só vez (20 e tal cassetes VHS, com os respetivos guiões em papel). Uma literal carga de trabalhos. A dada altura, porém, as empresas modernizaram-se e agora é tudo enviado por computador (filme e guiões), podendo o tradutor estar onde bem entender e continuar a trabalhar. O que é, aliás, outro dos atrativos desta profissão, que não nos prende a um determinado lugar. Foi também por isso que resolvi voltar à Terceira, em 2013, pois apesar do Porto ser o meu segundo lar, a verdade é que as saudades do primeiro já eram muitas. Quanto a ser “uma referência na tradução nacional”, confesso que só me comecei a aperceber disso quando uma nossa conterrânea, que acabou o curso de tradução este ano na Universidade de Coimbra, me enviou uma mensagem a dizer que numa das aulas, ao falarem nos bons tradutores de audiovisual, o meu nome veio logo à baila.

AO -Como é o dia a dia de uma tradutora bastante requisitada?

Depende muito do trabalho que se tem entre mãos. Por vezes, são traduções com data de emissão para muito breve e tudo o resto, obrigatoriamente, tem de passar para segundo plano, inclusive fins de semana, feriados e férias. Sou tradutora 24 horas por dia, sete dias por semana. Contudo, também há trabalhos que podem ser feitos com mais calma e, nesse caso, gerindo bem o tempo, consegue-se arranjar tempo para quase tudo. A verdade é que quando se faz uma pausa para efetuar outra tarefa qualquer, acaba-se sempre por se ter de repor o tempo noutra altura. Assim, o meu dia a dia é passado, sobretudo, sentada ao computador (no verão desloco o escritório para o meu quintal), com as devidas pausas para as tarefas de casa (feitas sempre à pressa) e os imprescindíveis momentos em que a tradutora dá lugar à mãe e que são, infelizmente, sempre poucos e curtos.

AO - Quais foram os trabalhos mais prazerosos?

É difícil responder a esta pergunta. É quase como pedir a alguém para escolher um filho favorito. Mas claro que houve séries que ficaram gravadas na lembrança, sobretudo quando as traduzo da primeira à última temporada, como foi o caso da excelente “Uma Aldeia Francesa”, de “Versailles”, que terminou recentemente, e de séries mais antigas, como “Sobrenatural”, “Fringe” e, sobretudo, pela sua irreverência, a fantástica “No Limite”. Quanto a filmes, não posso escolher um só, mas, por exemplo, foi um enorme desafio traduzir a trilogia de “O Senhor dos Anéis”, “Os Miseráveis” ou o japonês “Os Sete Samurais”, de Akira Kurosawa. E depois há ainda as séries documentais, como “Apocalipse da Segunda Guerra Mundial” ou “Cosmos: Uma Odisseia no Espaço”, para o National Geographic e para a RTP. A diversidade de assuntos a tratar é, claramente, outro dos atrativos desta profissão.


AO - A sociedade portuguesa (e particularmente a açoriana) reconhece a importância de uma boa tradução?

Apesar de preferir o audiovisual e de trabalhar quase exclusivamente em tradução e legendagem, a verdade é que o estágio e os dois anos como única Técnica Superior de Tradução na Câmara Municipal do Porto me preparam para qualquer tipo de tradução e já efetuei traduções de textos para empresas e entidades açorianas, o que me leva a crer que, finalmente, se começa a reconhecer a importância da tradução profissional no arquipélago. Porém, ainda há muito que fazer para que a tradução seja respeitada e vista como uma profissão sem a qual o mundo, já de si complicado, simplesmente não funcionaria.

AO - Como é que se pode trabalhar eficazmente a sensibilização?

Há uns meses, fui convidada para ir falar sobre a minha profissão a alunos do 9º ano da Escola Básica Integrada de Angra do Heroísmo. Creio ter-lhes feito perceber a complexidade da tradução e, logo, a necessidade de ser levada a cabo por quem está devidamente preparado. A sensibilização passará, sobretudo, pelos jovens. Passará por fazê-los entender que não basta saber inglês (ou outra língua qualquer) para se ser tradutor. Antes de mais, há que lhes dizer que a principal língua do tradutor é a portuguesa, pois é para ela que traduzirão. E a importância de se dominar o português é ainda maior se considerarmos que há muita gente que a única coisa que lê são legendas. Há quem não leia livros nem jornais nem revistas, mas acabe sempre por ver TV e, inevitavelmente, ler as legendas. Logo, o único contacto dessas pessoas com o português escrito passa por um tradutor que se quer muito bom na língua de partida, mas excelente na língua de chegada. Finalmente, a sensibilização passará também por chamar a atenção do tradutor e do cliente para as traduções menos boas, de forma a que, futuramente, se corrijam erros e a oferta esteja à altura da procura e vice-versa.

AO - Colabora com a RTP. Como estão os restantes canais nacionais neste âmbito?

Embora considere que a RTP continua a primar pela qualidade das suas traduções, os restantes canais nacionais melhoraram muito nos últimos tempos e é visivelmente notória a vontade de se continuar a melhorar. Para tal, há que saber escolher os tradutores, mantendo os que dão prova de valor e descartando os restantes, até que estejam à altura. Afinal, parafraseando Lanna Castellano, uma grande referência da tradução: “A nossa profissão baseia-se no conhecimento e na experiência. Tem o maior período de aprendizagem de qualquer profissão. Só aos 30 se começa a ser útil como tradutor, só aos 50 se começa a estar no auge.” Não quero com isto dizer que os jovens acabados de sair das faculdades não sejam um dia excelentes tradutores, mas convém juntar à juventude uma grande dose de cultura geral e alguma experiência de vida.

AO- Recorda-se de alguma tradução atroz que a tenha incomodado?

Há vários tipos de erros na tradução. O mais simples e habitual (que também já cometi) é a ocasional gralha, da letra trocada ou da letra a mais ou a menos. Não há tradutor que já não tenha deixado passar uma gralha, o que se deve, muitas vezes, à urgência da tradução. Depois, há os erros graves por não se dominar, verdadeiramente, a língua estrangeira e, finalmente, os erros ainda mais graves que são os de quem não domina o português. Estes últimos, naturalmente, não podem, nunca, ser associados a quem se diz tradutor. Embora já me tenham passado muitos pela frente, recordo-me de um “Pai Nosso” traduzido à letra, do inglês, por um supostamente bom tradutor que, sendo ateu, não conhecia, naturalmente, a oração cristã. Deveria, porém, saber que tem a sua forma de ser dita, informar-se e usá-la corretamente. É caso para dizer: “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem.”

AO - Estamos na era das "traduções pirata" em filmes pirata. Teme que a profissão possa perder estatuto?

Pelo contrário. Tenho esperança de que, ao serem confrontadas com péssimas “traduções pirata”, as pessoas notem a diferença entre estas e as que são praticadas pelos bons canais de televisão. Por outro lado, também cabe aos canais zelarem pelo seu bom-nome e reputação e apostarem em bons tradutores, para não se verem igualados à má qualidade que, geralmente, é sinónimo de “traduções pirata”.

AO - Quais são as maiores dificuldades de se ser tradutor em Portugal? E nos Açores?

A maior dificuldade, em termos de reconhecimento da profissão, ainda se prende com a ideia descabida de que qualquer um pode traduzir desde que saiba uma língua estrangeira. Proponho que quem pensa assim faça uma tradução e depois a compare com a mesma tradução feita por um bom tradutor profissional. E isso aplica-se também às empresas que põem a secretária a traduzir porque “era boa aluna a inglês”. A qualidade paga-se (embora o preço da tradução, em Portugal, seja, porventura, o pior da Europa), mas ainda há muito quem prefira pagar pouco (logo, a um mau tradutor), para poupar. Também a carga fiscal da tradução em Portugal (com IVA e IRS exagerados) e os descontos para a Segurança Social implicam que praticamente metade do que o tradutor aufere não lhe pertence. De facto, não é fácil ser tradutor em Portugal e só a paixão pela profissão permite continuar a exercê-la quando, por vezes, até os clientes se “esquecem” de pagar ou pagam quando lhes dá mais jeito, esquecendo-se que os tradutores têm despesas mensais como toda a gente.

AO - Recorda-se de alguma situação mais caricata que tenha acontecido no exercício da sua profissão?

Houve uma, em particular, que me ficou na lembrança. Ao contrário da maioria dos tradutores, que se especializa numa determinada área e traduz, quase sempre, o mesmo tipo de temática, o tradutor de audiovisual depara-se com os mais diversos assuntos e, claro, tem de saber onde encontrar soluções. Foi assim que, ainda muito no início da minha carreira de tradutora, dei por mim rodeada de solícitos agentes da PSP do Porto, na esquadra do Carvalhido, a informarem-me sobre a linguagem usada nas comunicações entre eles, para poder traduzir cabalmente o filme mexicano “El patrullero”. Quem não ouvisse a conversa, acharia, certamente, que estariam a interrogar uma perigosa delinquente. Porém, tratava-se apenas uma simples tradutora que percebeu que para apresentar um bom trabalho necessitava da ajuda de especialistas, não em espanhol ou em português, mas no assunto em questão, algo que um bom tradutor não deve ter receio de fazer.

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