Autor: Sílvia Maia, Agência Lusa
A situação do doping em Portugal é analisada pelos deputados da Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República. Rui, Tó e César (nomes fictícios) são três desportistas amadores que retratam um mundo escondido do consumo de substâncias vendidas ilegalmente.
Não vivem à margem da lei, porque os desportistas amadores não estão contemplados no decreto-lei que regula o doping em Portugal. O tráfico e consumo de produtos dopantes é proibido, mas as sanções são dirigidas apenas aos desportistas federados.
O Governo prepara-se agora para alterar a situação. Até lá, "vão continuar a existir ginásios que encobrem o negócio", alerta Tó, segurança da noite em Coimbra e frequentador dos chamados "ginásios do ferro" há mais de uma década. Depois de ter visto amigos a "darem-se mal" com a experiência diz que já não toma nada, porque os riscos para a saúde não compensam os ganhos que se vêem ao espelho.
"O consumo dessas substâncias pode potenciar o cancro do fígado, da próstata e da pele, pode provocar hipertensão, enfarte do miocárdio, atrofia dos testículos, esterilidade masculina, alteração do comportamento", lembra Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, que deixa o risco de morte para o fim da extensa lista de "inconvenientes".
Indiferente aos perigos do consumo excessivo de medicamentos, alguns até para uso veterinário, Rui está apostado em prosseguir o seu objectivo. Começou há três semanas a toma de um verdadeiro "cocktail" de fármacos para ganhar músculo, prática que no meio se chama de "ciclar". O conhecimento que tem das propriedades dos esteróides anabolizantes e hormonas de crescimento atestam que é rodado nestas andanças. São nove anos de contacto com substâncias proibidas, a aprender com colegas e desconhecidos em chats na internet. São nove anos a trabalhar para conseguir o que chama "um corpo danone".
"Nós andamos a treinar para ficar maiores e descobrimos que para isso temos de tomar alguma coisa. Começamos pelos batidos, mas as coisas naturais não são tão rápidas nem têm os mesmos efeitos", explica Rui, que está a tomar "Deca e Equipoise, um medicamento que é dado aos cavalos de corrida", diz.
Sob o anonimato, não se importa de revelar os detalhes da sua história, mas Rui é uma excepção. "Estamos a falar de um jogo proibido. As pessoas não contam tudo o que fazem nem tudo o que sabem", garante o trabalhador da construção civil, 36 anos.
A internet é uma boa fonte não só para comprar tudo o que é preciso mas também para trocar ideias e ficar mais informado. Há chats onde se trocam opiniões sobre as "melhores doses" para se conseguir atingir os "melhores resultados" e até se ensina como injectar as substâncias.
"Furas a pele com a agulha, quando a penetração oferecer mais resistência é porque atingiste o músculo. (…) Se entra sangue é porque atingiste uma veia, o que é mau. Retira a agulha, troca por uma nova e repete o procedimento noutro sítio", explica um site português aos que têm medo de se injectar.
A injecção de esteróides que Carlos dá na sua própria nádega duas vezes por semana já é um gesto mecânico. Gastou 480 euros para perder algum peso e ganhar músculo em oito semanas. Em mente já está a preparar o próximo "ciclo de winstrol para secar", ou seja, definir os músculos. Os medicamentos - muitos deles vendidos apenas com receita médica - arranja-os através de "um amigo que também toma e que os vai comprar lá fora". Tudo começou depois de seis anos a treinar sem ver resultados, em 1999.
"Antigamente, conseguiam-se os medicamentos através de conhecimentos na farmácia, agora as coisas vêm de fora ou são mandadas vir pela net. Tenho um amigo que chegou a comprar cenas no e-bay. O grande risco de comprar na net é poder não receber nada. Mas na vida quase tudo se baseia no risco", explica Tó, 31 anos.
Comprar a desconhecidos também se pode revelar um logro. "A hormona de crescimento é muito cara. Sei de pessoas que a tomaram e depois puseram placebo na cápsula usada e venderam-na. As pessoas nunca descobrem, mas estão a ser enganadas", alerta Tó.
Nos ginásios, o tema surge naturalmente nas conversa de balneário. Quem vende tenta seduzir quem não consegue atingir o corpo ideal. "Os jovens tomam tudo o que lhes dão", afirma Tó, lembrando os "gangs de marginais que aceitam miúdos cada vez mais novos. São putos que se querem afirmar e que tomam esse tipo de coisas para aumentar a massa muscular", explica.
Um estudo sobre comportamentos de saúde dos jovens revela que em Portugal existem crianças de 11 anos que já experimentaram o doping. "Há mais rapazes do que raparigas e os mais velhos são os que dizem mais vezes ter experimentado", explicou à Lusa Mafalda Ferreira, uma das autoras da investigação realizada pela Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa.
As bailarinas da noite e os seguranças são grupos onde o consumo está generalizado. Mas Tó garante que os esteróides e hormonas são "tomados por todo o tipo de gente". Os candidatos mais vulneráveis estão identificados: "As pessoas mais vaidosas com o corpo, com menos posses económicas e com menos conhecimento dos malefícios são as que têm mais probabilidades em vir a tomar", explica o professor de Educação Fisica André Freire, baseando-se no estudo de fim de curso que realizou para a Universidade Lusófona.
José Júlio Castro, vice-presidente da associação portuguesa de ginásios, sublinha que "não se pode confundir ginásios com centros de dopagem e locais onde se praticam actos ilicitos", lembrando que os ginásios de hoje são espaços de bem-estar que promovem a saúde
Já Tó tem uma percepção diferente, porque se calhar os espaços que frequenta também são diferentes: "Nos ginásios todos treinam para o mesmo: para o ego, para o espelho. Não para a saúde".
Não vivem à margem da lei, porque os desportistas amadores não estão contemplados no decreto-lei que regula o doping em Portugal. O tráfico e consumo de produtos dopantes é proibido, mas as sanções são dirigidas apenas aos desportistas federados.
O Governo prepara-se agora para alterar a situação. Até lá, "vão continuar a existir ginásios que encobrem o negócio", alerta Tó, segurança da noite em Coimbra e frequentador dos chamados "ginásios do ferro" há mais de uma década. Depois de ter visto amigos a "darem-se mal" com a experiência diz que já não toma nada, porque os riscos para a saúde não compensam os ganhos que se vêem ao espelho.
"O consumo dessas substâncias pode potenciar o cancro do fígado, da próstata e da pele, pode provocar hipertensão, enfarte do miocárdio, atrofia dos testículos, esterilidade masculina, alteração do comportamento", lembra Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, que deixa o risco de morte para o fim da extensa lista de "inconvenientes".
Indiferente aos perigos do consumo excessivo de medicamentos, alguns até para uso veterinário, Rui está apostado em prosseguir o seu objectivo. Começou há três semanas a toma de um verdadeiro "cocktail" de fármacos para ganhar músculo, prática que no meio se chama de "ciclar". O conhecimento que tem das propriedades dos esteróides anabolizantes e hormonas de crescimento atestam que é rodado nestas andanças. São nove anos de contacto com substâncias proibidas, a aprender com colegas e desconhecidos em chats na internet. São nove anos a trabalhar para conseguir o que chama "um corpo danone".
"Nós andamos a treinar para ficar maiores e descobrimos que para isso temos de tomar alguma coisa. Começamos pelos batidos, mas as coisas naturais não são tão rápidas nem têm os mesmos efeitos", explica Rui, que está a tomar "Deca e Equipoise, um medicamento que é dado aos cavalos de corrida", diz.
Sob o anonimato, não se importa de revelar os detalhes da sua história, mas Rui é uma excepção. "Estamos a falar de um jogo proibido. As pessoas não contam tudo o que fazem nem tudo o que sabem", garante o trabalhador da construção civil, 36 anos.
A internet é uma boa fonte não só para comprar tudo o que é preciso mas também para trocar ideias e ficar mais informado. Há chats onde se trocam opiniões sobre as "melhores doses" para se conseguir atingir os "melhores resultados" e até se ensina como injectar as substâncias.
"Furas a pele com a agulha, quando a penetração oferecer mais resistência é porque atingiste o músculo. (…) Se entra sangue é porque atingiste uma veia, o que é mau. Retira a agulha, troca por uma nova e repete o procedimento noutro sítio", explica um site português aos que têm medo de se injectar.
A injecção de esteróides que Carlos dá na sua própria nádega duas vezes por semana já é um gesto mecânico. Gastou 480 euros para perder algum peso e ganhar músculo em oito semanas. Em mente já está a preparar o próximo "ciclo de winstrol para secar", ou seja, definir os músculos. Os medicamentos - muitos deles vendidos apenas com receita médica - arranja-os através de "um amigo que também toma e que os vai comprar lá fora". Tudo começou depois de seis anos a treinar sem ver resultados, em 1999.
"Antigamente, conseguiam-se os medicamentos através de conhecimentos na farmácia, agora as coisas vêm de fora ou são mandadas vir pela net. Tenho um amigo que chegou a comprar cenas no e-bay. O grande risco de comprar na net é poder não receber nada. Mas na vida quase tudo se baseia no risco", explica Tó, 31 anos.
Comprar a desconhecidos também se pode revelar um logro. "A hormona de crescimento é muito cara. Sei de pessoas que a tomaram e depois puseram placebo na cápsula usada e venderam-na. As pessoas nunca descobrem, mas estão a ser enganadas", alerta Tó.
Nos ginásios, o tema surge naturalmente nas conversa de balneário. Quem vende tenta seduzir quem não consegue atingir o corpo ideal. "Os jovens tomam tudo o que lhes dão", afirma Tó, lembrando os "gangs de marginais que aceitam miúdos cada vez mais novos. São putos que se querem afirmar e que tomam esse tipo de coisas para aumentar a massa muscular", explica.
Um estudo sobre comportamentos de saúde dos jovens revela que em Portugal existem crianças de 11 anos que já experimentaram o doping. "Há mais rapazes do que raparigas e os mais velhos são os que dizem mais vezes ter experimentado", explicou à Lusa Mafalda Ferreira, uma das autoras da investigação realizada pela Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa.
As bailarinas da noite e os seguranças são grupos onde o consumo está generalizado. Mas Tó garante que os esteróides e hormonas são "tomados por todo o tipo de gente". Os candidatos mais vulneráveis estão identificados: "As pessoas mais vaidosas com o corpo, com menos posses económicas e com menos conhecimento dos malefícios são as que têm mais probabilidades em vir a tomar", explica o professor de Educação Fisica André Freire, baseando-se no estudo de fim de curso que realizou para a Universidade Lusófona.
José Júlio Castro, vice-presidente da associação portuguesa de ginásios, sublinha que "não se pode confundir ginásios com centros de dopagem e locais onde se praticam actos ilicitos", lembrando que os ginásios de hoje são espaços de bem-estar que promovem a saúde
Já Tó tem uma percepção diferente, porque se calhar os espaços que frequenta também são diferentes: "Nos ginásios todos treinam para o mesmo: para o ego, para o espelho. Não para a saúde".