Autor: Fernanda Câncio/Diário de Notícias/Açoriano Oriental
“Tudo indica que o arguido atuou por ódio racial, com total desprezo pela vida humana daqueles que não partilham da sua cor de pele”.
A frase consta do despacho de pronúncia do Tribunal de Instrução Criminal da Horta, datado de 30 de março, que determina que AP, 24 anos, atualmente em prisão domiciliária, deve ir a julgamento pelos crimes de ofensa à integridade física e homicídio – ambos qualificados, ou seja agravados, pela motivação de ódio racial e pelo motivo fútil ou torpe – que tiveram como vítima o luso-cabo-verdiano Ademir Araújo Moreno, de 49 anos, a 18 de março deste ano, no Faial.
A moldura penal do primeiro crime é até quatro anos; a do segundo é de 12 a 25 anos.
AP, 1,80 de altura e rondando os 100 kg, agrediu Ademir Moreno por duas vezes, à porta de uma discoteca na qual trabalhava como barman, na manhã do domingo, 17 de março de 2024, na sequência de uma briga entre jovens raparigas, uma das quais sua (do arguido) namorada. Briga na qual, de acordo com testemunhas, Ademir terá, em conjunto com outras pessoas, intervindo para a fazer cessar, segurando numa das contendoras – a namorada de AP.
Se aquando da primeira agressão Ademir terá conseguido
defender-se, colocando as mãos à frente da cara, na segunda, que terá
sido perpetrada pelo arguido quando a vítima não o estava a ver, uma
pancada desferida na têmpora esquerda fê-lo cair desamparado, batendo
com a parte de trás da cabeça no passeio e sofrendo lesões cerebrais que
lhe causaram a morte no dia seguinte.
“Não tenho medo de pretos”
Antes das agressões, AP, que não conheceria Ademir previamente, teria, de acordo com várias testemunhas citadas no despacho de pronúncia, dito: “Não tenho medo de pretos, podem vir quem quiser!” e “Eu não tenho medo nenhum de pretos!”.
São sobretudo essas frases que para o despacho de pronúncia, assinado pela juíza Beatriz de Correia de Sousa e ao qual o DN teve acesso, consubstanciam a motivação de ódio racial: “Tanto resulta, desde logo, das expressões proferidas pelo arguido antes de atuar em ambas as ocasiões, cuja adjetivação utilizada se afigura manifestação de uma alegada e perspetivada superioridade face à vítima, colocando a última num (pretenso) nível inferior civilizacional, intelectual e/ou moral”.
A magistrada também considera que “o arguido atuou de forma fútil, na medida em que com a sua conduta contra Ademir Moreno direcionou a frustração provinda da altercação que envolveu a companheira do arguido, tornada pública (…)”. E explica: “Para as ofensas serem qualificadas por qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, motivo vil, abjeto, revelador de baixo carácter, repugnante, ignóbil, nitidamente revelador, de profundo desprezo pela vida humana (...), traduzindo egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral; ao passo que a atuação por ódio racial consiste numa atitude mental de aversão profunda por outrem, que o agente não reconhece como pessoas digna de direitos, em virtude da sua raça, que inclui a cor, descendência e origem nacional ou étnica (...).”
Quanto à acusação de homicídio em si – que pressupõe intenção de matar ou, no chamado “dolo eventual”, a aceitação da possibilidade de da ação sobrevir a morte –, o despacho justifica-a com o facto de o arguido, que como referido estava a trabalhar como barman, ter de prever que a vítima estaria alcoolizada ou pelo menos cansada, dada a hora e o local (“à porta de uma discoteca, perto das 6h00”). E que “uma agressão na zona craniana, conjugada com o facto da vítima estar sob o efeito do álcool e, por esse motivo, com reduzidas habilidades psicomotoras (tais como tempo de reação aumentado, pioria da coordenação mão-olhos, precisão, equilíbrio e coordenação motora para movimentos complexos)” a poderiam levar a cair, pelo que teria de “antever que deste tipo de agressões pode resultar indiretamente, ou directamente, a morte da vítima, como efetivamente veio a suceder”.
Arguido invocou existência de “um confronto racial” no Faial
Esta decisão do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) da Horta surge após o pedido de instrução do arguido face à acusação exarada a 5 de setembro pelo Ministério Público (MP). Acusação na qual são precisamente, como o DN noticiou em primeira mão, imputados a AP os crimes de ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado com dolo eventual. Também para o MP, as circunstâncias que neste caso “revelam especial censurabilidade ou perversidade” e que, nos termos do Código Penal, qualificam os crimes, são a motivação de ódio racial e o motivo torpe ou fútil.
Como o TIC, o MP fundamenta as ditas qualificações nas expressões ouvidas a AP antes das agressões e no facto de o arguido não conhecer previamente Ademir Moreno, considerando que “a motivação é frívola e insignificante e manifestamente desproporcional à gravidade dos factos que precederam o crime”.
E, ao contrário do que sucedeu com três juízas desembargadoras do Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 15 de julho em que examinam a legitimidade da medida de coação aplicada ao arguido logo após a detenção (prisão preventiva), as quais ficaram com dúvidas “sobre qual a parcela da realidade que efetivamente cada uma das identificadas testemunhas (…) presenciou e se o que trouxeram aos autos como tendo sido as expressões proferidas pelo arguido na(s) ocasião(ões) em causa nos autos corresponde efetivamente ao que o arguido verbalizou”, o TIC da Horta avalia como “suficientemente verosímeis” os depoimentos recolhidos. Os quais, aponta, “asseveraram as expressões proferidas pelo arguido, a postura discriminadora do mesmo em ocasiões anteriores, demonstrando o seu incómodo e agressividade perante a presença de pessoas de descendência africana e/ou a existência de um conflito entre a companheira do arguido (…) com uma terceira pessoa (…). Daqui resultam fortemente indicados os motivos que levaram o arguido a agredir e provar a morte de Ademir Moreno, quer por ódio racial, quer por Ademir ter intervindo na discussão perpetrada pela sua companheira, motivo este exíguo a provocar as consequências nefastas que provocou”.
Sem vencimento foi
considerada a pretensão do arguido de que teria sido, como defendeu o
seu advogado (Elísio Lourenço) – referindo-se quer ao acórdão da Relação
já citado, quer à decisão da juíza que, após a detenção, determinou a
prisão preventiva – “afastada a dinâmica do ódio racial e da intenção de
matar”. Argumentando que “não foi um soco a matar Ademir Moreno, mas
sim a queda”, e que “ser racista não significa ter ódio racial e atuar
por ódio racial e nem sequer AP é racista”, o causídico alegou a
existência de “um confronto racial na ilha [do Faial]” e o “clima de
ódio nas redes sociais” para requerer à magistrada do TIC que desse “um
sinal de tranquilidade, para acalmar a comunidade”.
A decisão do TIC é irrecorrível por, nos termos do artigo 310º do Código de Processo Penal, pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, “determinando a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”.
Ademir Araújo deixou uma filha de 20 anos e viúva Lurdes Ferreira, que é assistente no processo. Contactada pelo DN, Lurdes Ferreira quis apenas certificar: “O meu marido era um homem bom, não merecia morrer assim. Acredito na justiça”.