Açoriano Oriental
É preciso conhecer as espécies marinhas para sermos capazes de as proteger

Fátima Neira Bióloga que, juntamente com António Sabuco, está a desenvolver o projeto Elasmobase: Açores, uma iniciativa pioneira dedicada à conservação de elasmobrânquios no arquipélago dos Açores, que conta com a colaboração de pescadores e empresas com atividade no mar



Autor: Arthur Melo/Ana Carvalho Melo

Em primeiro lugar, no que consiste o projeto Elasmobase: Açores?
O projeto Elasmobase: Açores é essencialmente um projeto de investigação, desenvolvido em colaboração com empresas que operam diariamente no mar, pescadores com gerações de experiência e através de pesquisa aplicada. Em resumo, trata-se de um projeto de pesquisa sobre tubarões e raias.  (...)  Combinamos diferentes objetivos que nos permitem recolher dados sobre a ecologia das espécies e identificar as várias espécies presentes na região. Outro objetivo é conectar diferentes áreas, como a pesca, as empresas de turismo marítimo e a ciência, trabalhando em conjunto para compreender melhor estes animais.

Porquê a escolha dos elasmobrânquios, ou seja, dos tubarões e das raias?
Os tubarões são extremamente importantes para os nossos oceanos, apesar do medo que ainda existe na sociedade em relação a eles. Já as raias são muitas vezes esquecidas, mas são igualmente importantes. São predadores de topo que controlam a estabilidade de muitos ecossistemas marinhos. Se estes animais desaparecessem, um equilíbrio crucial seria comprometido. E decidimos estudá-los nos Açores devido à enorme falta de informação disponível sobre eles. (...) Noutras regiões, como as Ilhas Canárias, é fácil encontrar informação acessível, inclusive na Internet. Mas aqui não há quase nada que responda às muitas perguntas que temos sobre estes animais. E isso é muito importante porque, se não os conhecemos, não sabemos o que está a acontecer e não conseguimos protegê-los. Informação é poder.

Estão a desenvolver trabalho na ilha de São Miguel. Em que zonas estão a atuar?
Estamos a trabalhar ao longo de toda a costa da ilha até às 20 milhas. Não temos um local específico atualmente, mas começámos pelas áreas com mais barcos disponíveis, como Rabo de Peixe, Ponta Delgada, Vila Franca, Nordeste e Mosteiros.

E vão provavelmente estender este projeto a outras ilhas?
Sim, de facto, atualmente estamos a colaborar com outros projetos, como o Manta Catalog da Ana Filipa em Santa Maria. Ela está lá há muitos anos e está a ajudar a expandir este projeto. A nossa ideia é chegar a todas as ilhas. Não queremos que nenhuma ilha fique esquecida. Para nós, todas são importantes, especialmente aquelas que estão mais isoladas, pois são mais naturais e selvagens, e muitas vezes não há informação sobre elas.

Os tubarões e as raias são espécies ameaçadas nos Açores?
São espécies ameaçadas em todo o mundo, não apenas nos Açores. O que é mais preocupante é que a pesca no oceano ao redor dos Açores é muito intensa, não apenas por Portugal, mas também por outros países como Espanha e França. Muitos barcos chegam aqui, e não estamos a falar de pesca artesanal, mas de pesca industrial, que prejudica muito estes animais. Este é um problema mundial muito importante. (...)

Além da pesca industrial, quais são as outras ameaças que os tubarões e as raias enfrentam?
A destruição de habitats é uma grande ameaça, como em outras partes do mundo. Se um animal não tem um habitat onde possa viver, ele desaparece. Isso já aconteceu com outras espécies em diferentes regiões. Além disso, a pesca, na minha opinião, é um dos maiores problemas, assim como a falta de informação. As pessoas não percebem, mas quando não sabemos o que está a acontecer, também é uma ameaça terrível para a espécie, pois não conseguimos protegê-la. Para mim, a falta de informação é uma das piores coisas.

Desconstruir o mito do tubarão que existe na mente das pessoas será um trabalho bastante difícil?
Sim, sem dúvida, mas sinto que atualmente, pouco a pouco, a situação está a melhorar porque as pessoas têm mais acesso à informação. As redes sociais e o mergulho contribuíram para isso. Pelo menos os mais jovens estão mais informados.
O turismo também pode ser uma forma de promover a defesa dessas espécies e, ao mesmo tempo, gerar valor acrescentado?
Eu penso que sim. Atualmente, tudo o que está relacionado com gerar dinheiro tem importância. Quando algo não traz benefício económico, tende a ser mais esquecido. No entanto, é importante que o turismo seja feito de forma controlada. (...) Por exemplo, no mergulho com animais, temos o bom exemplo com as baleias. Quando as pessoas vão ver estes animais, recebem informações e veem-nos com os seus próprios olhos. Isso fica no coração e faz com que se preocupem mais com o impacto que podem ter.

É importante haver regras?
Efetivamente, é essencial haver regras para não afetar negativamente os animais, como já acontece em outras partes do mundo.

A fiscalização está no terreno?
Pelo que tenho percebido, muitas empresas também fazem essa parte de controlo, denunciando pesca ilegal, por exemplo.

O avistamento de tubarões no mar dos Açores tem sido cada vez mais frequente nos últimos anos. Esta é uma situação normal ou éramos nós que não olhávamos com atenção para o nosso mar?
Essa é uma boa pergunta e estamos a tentar perceber também. Nas entrevistas que fazemos, os pescadores contam-nos que, na época dos seus pais, quando eram crianças, havia muitos tubarões e que agora é difícil vê-los. É possível que agora pareça que temos mais tubarões porque estamos mais preocupados com o mar. Nos últimos anos, o mar tornou-se uma preocupação geral, pois percebemos que tem um impacto muito grande na nossa vida. E por essa razão, começámos a dar mais atenção ao mar. No entanto, se fizermos um cálculo entre o que se pesca e a taxa de reprodução, o resultado será negativo. Não sinto que o número de animais esteja a aumentar, embora as correntes possam estar a mudar devido às alterações climáticas. Honestamente, acho que temos mais pessoas atentas ao mar.

Quais são as espécies de tubarões mais comuns no mar dos Açores?
Não consigo dar uma resposta muito concreta, porque ainda temos pouca informação. No entanto, os que vemos com mais frequência são o tubarão-martelo, também chamado cornuda, o tubarão-azul e, no verão, o tubarão-baleia, que este ano chegou muito cedo. Também temos o mako, considerado o tubarão mais rápido do mundo, e alguns tubarões como o cação, além de outros menos conhecidos, como o tubarão-frade, de que se sabe muito pouco.
São espécies que habitualmente estão aqui, são residentes ou estão de passagem no seu processo migratório?
Nós fazemos essa pergunta todos os dias, por isso queremos obter mais informação. Podem ser vistos durante todo o ano, mas precisamos de dados para perceber se estão aqui durante as migrações, se são grupos de juvenis, ou se chegam fêmeas grávidas para ter aqui as crias. Ainda falta muita informação. Parte da nossa investigação é exatamente para perceber isto.

E em relação às jamantas?
Vou usar os nomes comuns usados pelos pescadores: as mais comuns são a raia-águia e o ratão-amarelo. Mas temos outras espécies como o ratão-de-cauda-comprida e o ratão-preto. Temos também jamantas. A diversidade é enorme.

O projeto ainda está a dar os primeiros passos?
Estamos a começar este ano e de forma bastante humilde, batendo à porta das empresas marítimo-turísticas para perguntar se queriam colaborar. E o que posso dizer agora é que estou muito orgulhosa. As pessoas têm ajudado aqui em São Miguel e em outras ilhas como Santa Maria. Nem eu nem o meu colega António Sabugo estávamos à espera desta adesão, mas, em cerca de 12 meses, toda a gente decidiu ajudar.

Fale-nos um bocadinho do vosso dia a dia no mar. O que fazem?
Em relação às pescas, fazemos inquéritos e deixamos informação por escrito em alguns locais para as pessoas. Quando vamos para o mar, tentamos fazer pesquisa aplicada, utilizando estruturas com isco fechado para deixar um rasto de odor, de modo a atrair tubarões e jamantas para os filmar. Quando os animais se aproximam, conseguimos filmá-los e identificar o género e o tamanho aproximado. A ideia é ter estas estruturas em profundidade para captar os animais bentónicos e outras mais à superfície, no chamado azul, para filmar os pelágicos.
Mas, honestamente, a maior parte dos dados vêm das empresas marítimo-turísticas, de pessoas que trabalham no whale watching, que mergulham todos os dias, que fazem passeios de barco com clientes pela costa, de empresas de vela, ou seja, de todas as pessoas que vão diariamente para o mar e que registam os avistamentos que fazem. A nossa ideia de trabalho é ouvir as pessoas que estão todos os dias no mar.
Portanto, perguntar-me o que fazemos no dia a dia é redutor. A pergunta deveria ser: o que fazem todos os colaboradores no dia a dia? A resposta é: ir para o mar, olhar para o mar, entender o mar e registar todos os avistamentos ou mudanças que observam nos comportamentos dos animais.
A quantidade de dados que nos estão a fornecer diariamente é impressionante, e o nosso trabalho é analisá-los e validá-los.

A expansão deste projeto para outras ilhas dos Açores certamente só poderá acontecer com o apoio de outras empresas?
Em Santa Maria já temos algumas empresas que mostram interesse. Estou muito orgulhosa da resposta que temos tido.

Houve algum contacto do governo no sentido de uma eventual parceria?
Sim e não. Quando começámos a pensar em fazer este projeto, entrámos em contacto com a área do governo que tutela esta área para explicar o nosso projeto e a resposta foi positiva, mas ficou por aí. Compreendo que primeiro temos de mostrar o trabalho que estamos a desenvolver. Por parte da universidade, os professores sempre se mostraram colaborativos, houve sempre reuniões e apoio.

Quando contam ter informação suficiente, devidamente validada, estudada e fundamentada para apresentar?
Como no inverno o trabalho no mar é mais difícil, a nossa ideia é nessa altura trabalhar na análise dos dados para depois apresentarmos os resultados a todos.

Como está a ser financiado o projeto?
Uma das perguntas que as pessoas mais me fazem é se não vou receber nada com este projeto, em termos monetários. A minha resposta é: sim, mas eu não estou à procura de dinheiro. No entanto, sendo realista, preciso de dinheiro para financiar certas atividades.
Estamos a ter sorte, uma vez que algumas empresas nos ajudaram e fizeram doações. Também temos empresas locais que nos estão a ajudar com os barcos. Ou seja, somos autofinanciados, mas temos tido alguma ajuda. Mas seria muito bom que as autoridades competentes nos dessem alguma atenção e nos ajudassem.
Quem quiser contribuir pode fazê-lo através do crowdfunding que temos publicitado nas nossas redes sociais.


A entrevista à bióloga Fátima Neira é emitida na Rádio Açores TSF este domingo pelas 11h00, com repetição amanhã por volta das 14h00








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