“A Escultura é aquilo que eu nasci para fazer”

Catarina Alves. Escultora e criadora da marca “Pedras de Lava”, tem construído um percurso artístico que une tradição e inovação, arte e sustentabilidade, incluindo a força do basalto negro dos Açores nos seus projetos, que já passam fronteiras




Nascida no início dos anos 1980 na freguesia rural da Candelária, no concelho de Ponta Delgada, Catarina Alves cresceu rodeada pela natureza e pelos gestos manuais do quotidiano açoriano. “Venho de uma família rural”, recorda. 

O pai trabalhava na antiga empresa J. Pimentel e tinha talento para a carpintaria; a mãe, costureira e bordadeira, talentos que herdou de uma família de mulheres com muitos dotes. “A minha bisavó fazia fatos para homem, o que não era comum na altura”, destaca. Desde cedo, Catarina percebeu que, mesmo sem se falar de “arte”, havia ali uma predisposição para a criação. “Nunca ninguém na família desenvolveu a sua parte artística, mas havia grande propensão para as artes”, afirma, recordando que o seu avô, agricultor, sempre escreveu poemas. 

Na infância, passava horas a observar e recolher materiais, “estava sempre a recolher pedrinhas, folhas, galhos”, gestos que concluiu, mais tarde, terem sido o embrião da sua vocação para a escultura. Crescer na Candelária, num tempo em que o acesso à formação artística era escasso, obrigou-a a construir o seu percurso a partir da curiosidade e da intuição. “Nunca tive ninguém que me dissesse: ‘devias ir para Artes’. Era uma coisa que estava dentro de mim”, afirma. 

O primeiro contacto mais estruturado com a arte aconteceu no Liceu, onde apesar das notas serem boas, o tempo dedicado à disciplina era reduzido. Ainda assim, esse pequeno espaço bastou para que Catarina Alves percebesse o prazer de experimentar e criar com as mãos. Decidiu seguir Artes Plásticas e, em 1999, partiu para Lisboa, ingressando na Faculdade de Belas Artes. 

Aos 17 anos, o impacto da capital foi intenso: “foi assustador, porque Lisboa já era muito grande. Mas, ao mesmo tempo, foi das melhores coisas que me aconteceram.” Entrou inicialmente com interesse pela pintura porque “era o que mais se falava”, mas rapidamente descobriu que a sua verdadeira linguagem era o volume: “logo no primeiro ano senti que a Escultura é aquilo que eu nasci para fazer. O que me fascina são os volumes e as formas. Fascina-me extrair o excesso e dar forma à matéria”.

Terminada a formação, Catarina Alves regressa a São Miguel, trazendo consigo a determinação e o saber técnico adquiridos em Lisboa. Ainda enquanto estudante, foi convidada a colaborar na execução das Portas da Cidade de Fall River, nos Estados Unidos, um projeto público que marcaria o início da sua carreira. 

Na mesma altura, criou o Romeiro do Livramento, escultura monumental de cerca de dois metros, realizada integralmente por suas mãos. “Tenho a memória de estar a trabalhar com a rebarbadora lá no alpendre dos meus pais, com aquelas pedras enormes. Foi um teste de coragem na vida”, recorda. 

O processo, que envolveu erros, improvisos e superação, acabou por se tornar simbólico da sua relação com a escultura: “as pessoas ficavam incrédulas e perguntavam ‘foste tu que fizeste isso?’. Mas era mesmo eu. E isso deu-me força para continuar.” 

Mas como “viver só da escultura é complicado”, Catarina Alves começou também a explorar outras formas de expressão, sempre ligadas à matéria e à transformação. Em 2009, deu início a experiências em pequena escala, que mais tarde evoluíram para a sua marca de joalharia de autor, “Pedras de Lava”, registada em 2022. 

“A ideia nasceu da vontade de usar a pedra, a matéria que mais gosto, mas numa dimensão mais pequena”, descreve. 

Trabalhando principalmente o basalto e o arame de prata, Catarina Alves cria peças únicas, inspiradas na origem vulcânica das ilhas e na sua própria prática escultórica. As suas coleções, como Ígneas e Terras de Brumas, exploram conceitos de fogo, terra e transformação, mantendo sempre a manualidade e o desenho autoral. “O processo é o mesmo da escultura: ter a ideia, pesquisar, experimentar. Só muda a escala”, explica. 

Reconhece, com naturalidade, o papel do empreendedorismo na vida artística: “os artistas também têm de ter essa vertente”. 

O trabalho artesanal dá-lhe independência e liberdade criativa, mas também exige disciplina e gestão: “sou independente, mas trabalho todos os dias; só que o meu horário é diferente do das oito às cinco”. 

Nos últimos anos, Catarina Alves tem-se destacado não apenas como escultora e designer, mas também como agente cultural e ambiental. Um dos seus projetos mais significativos, o “Manifesto ao Desperdício” (2022), surgiu do desejo de unir arte e sustentabilidade. O projeto, apoiado pela empresa Musami, percorreu todos os concelhos de São Miguel, promovendo exposições, oficinas e visitas guiadas, assim como reflexões sobre o sobre consumo, resíduos e transformação de materiais. “Quis usar as minhas capacidades enquanto artista para promover uma reflexão comunitária sobre os nossos hábitos. Tudo o que fazemos tem impacto no ambiente e no outro”, explicou, recordando que a instalação final, feita em materiais diversos como papel, plástico e pó de pedra, refletia a metáfora da resiliência: “a criança, parecendo frágil, é o ser mais resiliente que existe. Tal como o papel, que, trabalhado, torna-se resistente.” 

Para além de projetos individuais, Catarina Alves mantém colaborações com escolas e instituições sociais, como a Aurora Social de Ponta Delgada e associações comunitárias da Candelária e Ribeira Grande. Nessas parcerias, conduz workshops de escultura e joalharia, incentivando a criatividade em jovens e idosos. “Gosto de ver quando alguém que dizia ‘não gosto de mexer no barro’ acaba a dizer ‘gostei muito’. Quando o que fazemos tem impacto positivo nas pessoas, vale a pena”, conta. 

Mas também mantém viva a tradição através projetos comunitários, como o presépio da freguesia da Candelária, realizado com voluntários de várias idades. 

Atualmente, Catarina Alves continua a viver e a trabalhar na Candelária, onde mantém o seu ateliê. Divide-se entre novas esculturas públicas, como a realização de um projeto com a empresa Marques Britas, umas novas Portas da Cidade para Brampton, no Canadá, e a expansão internacional da marca Pedras de Lava, recentemente selecionada pela Mirateca Arts para promoção em Toronto. 

Em paralelo, tem patente, desde o dia 12 deste mês, uma exposição que mostra trabalhos realizados em colaboração com os utentes Aurora Social no Centro Cultural de Santa Clara. “Nesta exposição vamos mostrar produtos que desenvolvemos como os presépios de lapinha, que se distinguem por usar pó de pedra e a figura de uma gatinha, a Aurora, que é a mascote da associação”, descreve. 

Sobre o seu processo criativo, confessa: “Há alturas em que as ideias não param. Tenho cadernos e lápis por todo o lado. Às vezes é uma palavra ouvida na rádio que faz um clique.” E conclui, com serenidade: “A escultura é onde me sinto inteira. É da matéria que nasce a forma, e é na forma que me encontro.”

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