Autor: Rui Jorge Cabral
A aprovação pela Comissão de Agricultura do Parlamento Europeu do chamado ‘Pacote do Vinho’ pode ter sido o primeiro passo para o levantamento da proibição da comercialização de vinho na União Europeia a partir da casta Isabella, que produz o tradicional Vinho de Cheiro nos Açores.
Contudo, o processo ainda está longe de estar concluído (ver caixa). Refira-se que só podem ser comercializados na União Europeia vinhos feitos a partir de castas de uvas que estejam na lista de castas autorizadas.
A casta Isabella, a partir da qual se produz o tradicional Vinho de Cheiro dos Açores, é uma das que está proibida. Esta casta existe na Europa, em países como Itália ou Espanha, não sendo este um problema exclusivo dos Açores. Recentemente, o eurodeputado socialista açoriano, André Franqueira Rodrigues, promoveu no Parlamento Europeu um debate sobre as chamadas ‘castas proibidas’, onde participou António Maçanita, enólogo e coproprietário da Azores Wine Company, na ilha do Pico, que fez uma apresentação sobre a necessidade de rever as restrições que ameaçam vinhas únicas no mundo, profundamente enraizadas na tradição açoriana.
Recentemente, entre os enólogos europeus, houve um ressurgir do interesse pelas ‘castas proibidas’ de uvas, sendo que em muitos casos os motivos que levaram à sua proibição já não se colocam, tendo sido alvo de documentários e artigos em revistas da especialidade. Estas variedades híbridas oriundas do continente americano foram introduzidas na Europa a partir do século XIX como forma de combater pragas que devastaram as vinhas também nos Açores, como foram os casos do oídio ou da filoxera.
Conforme recorda em declarações ao Açoriano Oriental António Maçanita, nos Açores, na década de 1850, o oídio fez com que a produção de vinho no arquipélago caísse bruscamente de cerca de 10 milhões de litros para 28 mil litros anuais, em menos de uma década. Contudo, salienta António Maçanita, castas como a Isabella, que produzem o Vinho de Cheiro são “híbridos” naturais, “que vieram substituir durante muito tempo quase 90 por cento da área de produção”, até voltarem de novo a cair e a dar lugar às castas açorianas autorizadas pela União Europeia.
Sobre o regresso da casta Isabella à lista de castas autorizadas pela União Europeia, António Maçanita é claro: “devia rever-se esta proibição, uma vez que não existem fundamentos de saúde ou técnicos que a justifiquem”, até porque já existem muitas castas híbridas autorizadas na Europa, por serem “muito mais resistentes às doenças”, permitindo também um uso de fitofármacos “menos intenso”.
Por isso, António Maçanita não vê outra razão para a proibição de castas como a Isabella que não seja a do ‘lobby’ das empresas fitofarmacêuticas.
Refira-se que a casta Isabella ainda existe nos Açores e pode produzir-se Vinho de Cheiro para exportação, por exemplo, para os Estados Unidos da América, mas sua comercialização está proibida na União Europeia e pode trazer consequências legais para os infratores
António Maçanita defende que a autorização da casta Isabella não seria propriamente para expandir o seu cultivo nos Açores, mas antes para preservar as vinhas que ainda existem na sua expressão antiga, o que já não acontece noutros lugares da Europa e que fazem parte do património cultural dos Açores. “Se dermos um copo de Vinho de Cheiro a um açoriano em qualquer parte do planeta, ele não precisa que lhe digam o que é”, afirma António Maçanita, para quem o Vinho de Cheiro faz parte de tradições como as Festas do Espírito Santo e não se deve deixar perder, mas antes proteger e valorizar na sua essência, com a sua componente aromática muito intensa, resultante do seu cruzamento com a uva lambrusca, que incute nos vinhos um aroma de morangos silvestres, a que se associa o caráter do solo vulcânico dos Açores.
Contudo, enquanto a sua produção e comercialização não for autorizada pela União Europeia, corre-se o risco do Vinho de Cheiro desaparecer na sua forma tradicional de produção ou desvirtuar-se com misturas de outros vinhos.
E mesmo quando para muitas pessoas o Vinho de Cheiro não é considerado um vinho bom, este enólogo responde que “a definição de ‘bom’ é algo que tem muito a ver com arquétipos”, havendo fora da União Europeia vinhos vendidos em restaurantes com estrelas Michelin produzidos a partir de castas proibidas na União Europeia, pelo que “há um potencial que tem de ser desbloqueado”, numa altura em que o setor do vinho não passa um bom momento na Europa e precisa, se calhar, precisamente de um refrescamento através do levantamento da proibição de certas castas que podem trazer ‘folclore’ e identidade local à produção vitivinícola.