Autor: Carmo Rodeia
Darwin passou pelos Açores e parou em São Miguel o tempo estritamente necessário para recolher correspondência, rumando à Terceira onde esteve seis dias. Chegou a Angra, a 19 de Setembro de 1836.
O autor do livro “A Origem das Espécies”, publicado há 150 anos, não encontrou “nada digno de registo” nestas paragens.
Talvez o cansaço e as descobertas feitas em Cabo Verde o tivessem preenchido tanto que tudo o que viu na Terceira não lhe causou qualquer espanto científico.
Dezoito anos mais tarde nascia Francisco Arruda Furtado, em Ponta Delgada. Um dos primeiros e mais fervorosos adeptos açorianos da tese evolucionista de Darwin.
Foi pena não se terem cruzado, mas talvez o desfasamento entre a passagem do cientista inglês e o nascimento do investigador português tivesse sido proveitoso.
Pelo menos aguçou, ainda mais, a curiosidade do jovem Arruda Furtado que haveria de se corresponder seis vezes com Darwin em busca de uma clarificação metodológica para estudar a origem das espécies biológicas no arquipélago dos Açores. Aquele onde o “mestre” nada encontrou.
Especialmente motivado e vocacionado para o estudo da história natural, Francisco Arruda Furtado desde cedo conviveu com a elite científica e cultural açoriana, como Carlos Machado e Antero de Quental, ambos próximos de Júlio Henriques, um dos mais fervorosos darwinistas portugueses. O ambiente “era-lhe propício”, diz Luís Arruda, Professor Jubilado e um dos grandes responsáveis pelo estudo e divulgação do trabalho e correspondência do naturalista açoriano.
“Sendo uma cabeça privilegiada” para o seu tempo, e “um anti clerical confesso”, Arruda Furtado só poderia ser seguidor das teses mais vanguardistas para a altura.
“O seu principal problema foi a falta de compreensão da sociedade para a sua obra”, acrescenta Luís Arruda.
Uma incompreensão que durou até 2002. O seu trabalho era praticamente desconhecido do grande público, circunscrevendo-se ao meio académico.
A Obra Científica completa de Francisco Arruda Furtado, em livro, que vai ser apresentada até ao final do mês de Março em Ponta Delgada, pelo Instituto Cultural, pode ser um contributo para esse reconhecimento, admite Luís Arruda, o seu autor.
Depois da Correspondência Científica de Arruda Furtado e do lançamento da Obra Científica em CD Rom, esta nova edição, em livro, “é a materialização de documentos de acesso ao grande público”, diz o presidente do Instituto Cultural de Ponta Delgada, Henrique de Aguiar Rodrigues.
“A obra ajuda-nos a perceber o esforço de um homem que, numa periferia, acompanhou o pensamento contemporâneo da teoria da evolução, vencendo barreiras e resistências”, adianta João Paulo Constância, biólogo.
Francisco Arruda Furtado foi sempre marginalizado. Sobretudo por uma elite micaelense, pouco disponível para aceitar teses revolucionárias.
Aliás, a este propósito José Guilherme Reis Leite, no prefácio da “Correspondência Científica de Francisco Arruda Furtado” diz que ele “foi abandonado à sua sorte e o seu nome esquecido pela intelectualidade açoriana”.
Teve uma vida curta, mas não lhe faltou tempo para se centrar em dois domínios fundamentais: a zoologia e a antropologia.
Na primeira, a sua investigação foi marcada pela questão do transformismo das espécies animais nos Açores, dedicando particular atenção aos moluscos, depois do desinteresse pelas aranhas, “menos fiáveis” para estudar a ocorrência do transformismo endémico.
À semelhança do mestre, que respondeu apenas a quatro das suas seis cartas, por já se encontrar “velho e debilitado”, Arruda Furtado usou os caracóis para explicar que as necessidades impostas pelo habitat levavam à transformação da espécie de origem em outras que ganhavam novas especificidades, que eram passadas de uns para outros, hereditariamente.
Na revista Era Nova, publicou três trabalhos científicos sobre algumas espécies de moluscos e a sua distribuição nos Açores. Comparou-os com congéneres do continente europeu e concluiu que a falta de calcário nas ilhas e o facto do clima ser ameno, contribuía para criar algumas diferenças entre eles. Desde logo, a espessura das conchas, que era bem mais fina que a dos caracóis franceses. Viu, ainda, que havia alterações ao nível dos órgãos sexuais.
O seu estudo mais polémico foi , no entanto, de âmbito antropológico. Partindo da tese de que as espécies não aparecem subitamente na natureza (sendo fruto de sucessivas e graduais transformações de formas e estruturas), Arruda Furtado concluiu que o homem terá passado por formas específicas, diferentes da actual, admitindo que a sua origem está próxima da configuração dos grandes macacos.