Da dor à criação, uma artista que renasceu nos Açores

Angela Fernandes. Com um percurso de vida marcado pelo trauma do assassinato político do pai, a redescoberta tardia da arte e a migração impulsionada pela intuição, a artista apresenta “Sistemas: natureza corpo”, exposição que simboliza uma nova etapa nos Açores e a consolidação de uma voz profundamente ligada à superação, à natureza e às possibilidades do futuro





A artista Angela Fernandes possui uma trajetória de vida e obra que se caracteriza por movimentos intensos, perdas marcantes e reinvenções pessoais e profissionais. Nasceu no Paraná, sul do Brasil, mas a infância foi pontuada por várias mudanças: aos 11 anos mudou-se para o Maranhão, onde viveria até à adolescência e passaria pelo trauma do assassinato político do pai, episódio que abalou profundamente a família e silenciou, durante anos, o seu entusiasmo pelas artes.​

Foi na casa da avó que Angela Fernandes teve a primeira imagem da arte. Como a avó era muito católica e frequentava muito a missa, sempre que a celebração terminava havia uma apresentação no coreto. Angela Fernandes conta que “era louca por aquilo” e sentia “uma forte vontade de subir ao coreto”. “Eu queria subir, eu queria falar os textos que os atores estavam falando ou, quando era uma palestra, eu queria palestrar”, recorda. 

Contudo, apesar desta fase muito viva, essa paixão pela arte “morreu” com o assassinato político do pai, quando tinha 15 anos, e ficou adormecida. Só mais tarde, aos 29 anos, após um período de questionamento interior sobre o porquê de não conseguir prosseguir com a faculdade, decidiu voltar à arte.​

Frequentou a escola de Wolf Maya, integrou grupos de renome (como o TAPA) e chegou a conquistar distinção em espetáculos. 

Aos 39 anos voltou a sentir um “vazio” e começou a questionar tudo. “Um dia a minha terapeuta disse-me: ‘Olha, isso vai vir num momento em que você esteja trabalhando com a arte, o teatro vai te ajudar nisso, fica tranquila, isso você vai entender’”, recorda, contando que isso aconteceu durante um exercício num grupo de teatro. Depois dessa catarse, a terapeuta aconselhou-a: “ou você pinta ou você escreve sobre o que você está vendo aí, sobre o que você está sentindo”. Foi neste ponto que Angela Fernandes descobriu na pintura uma forma de libertação, estreando-se com a técnica de espátula e produzindo, num curto espaço de tempo, um conjunto marcante de obras expressionistas.​

Sobre essa transição, explica: “aí veio a primeira pintura 15 dias depois, porque eu não conseguia escrever. Eu não conseguia escrever, mas eu via uma rede aqui, um rasgado assim, um emaranhado. Eu via algo muito vermelho aqui, todo o meu peito assim como um vórtex”, e acrescenta: “aí comecei a chorar porque eu achava que eu não era atriz, que eu era artista plástica e eu não queria ser artista plástica eu queria ser só atriz”. 

A sua primeira exposição “Estranhas entranhas” ocorreu em São Paulo, tendo o sucesso da mesma a levado a voltar aos estudos, agora na Escola Pan-Americana de Arte, em São Paulo, onde durante quatro anos aprofundou técnicas, consolidando o estilo próprio que a distingue.​

Em 2020, a pandemia funcionou como um novo ponto de viragem, depois de sentir que o seu casamento já não funcionava. Tudo começou com planos para viajar para Barcelona, que não se concretizaram, e acabou por se fixar nos Açores, ilha de São Miguel, impulsionada por uma intuição surgida durante uma meditação. 

Refletindo sobre esse período da sua vida, Angela Fernandes descreve: “eu me via sempre em cima de uma ponte atirando no escuro. O que ia acontecer ali em baixo, se alguém ia me segurar, não sei. Mas eu pressupunha que alguém ia me segurar, ia ter uma rede ali para me segurar e eu ia saltar. Essa rede foram os Açores”. 

O processo de adaptação não foi fácil, uma vez que, para se manter legalmente na ilha, precisou de provar que conseguia sustentar-se através da sua arte, enfrentando ceticismo e desafios do contexto local. Com o apoio de amigos e após uma primeira exposição bem-sucedida, ganhou reconhecimento.​​

E, quanto à persistência, afirma: “eu não estudei 10 anos para trabalhar num café. É a arte que vai ser o meu sustento, eu não tenho dúvida disso”.​

Ao longo da sua permanência na região, Angela integrou-se na comunidade, realizando trabalhos voluntários e envolvendo-se no teatro com a Direção Regional das Comunidades, nomeadamente no projeto “Nove ilhas, Nove ações”, onde interpretou o papel de uma imigrante que conta a sua história.​

Esta semana, Angela Fernandes inaugurou a exposição “Sistemas: natureza corpo”, com curadoria de Ana Feijó, patente no NONAGON – Parque de Ciência e Tecnologia de São Miguel, que marca o início de uma “nova fase da minha vida nos Açores” e uma nova direção para a sua vida na ilha. “Em julho deste ano, conheci o Luís Almeida, o presidente do NONAGON, que leu a minha entrevista no Açoriano Oriental e contactou-me, dizendo que queria ‘fazer algo diferente lá’ e dinamizar o espaço”, conta, explicando que lhe foi proposto que a exposição dialogasse com o evento que se iria realizar, sobre inteligência artificial.​

Assim nasceu “Sistemas: natureza corpo”, que resulta de uma “longa conversa com a inteligência artificial, sem medo”, acreditando que, se o artista tem coragem de “descer até às profundezas, ele não precisa ter medo da máquina”. Dessa investigação surgiu também uma instalação que representa o “subsolo vivo” e que traduz a ideia de que, se “o mundo acabar”, o que resta e fica é o que está por baixo; desse subsolo vivo, brotos começam a sair e encontram uma árvore já crescida, que tem um “útero ainda rasgado”, simbolizando o “renascer” e a continuação da natureza.​

Para Angela Fernandes, esta exposição assinala o início de uma “nova fase da minha vida nos Açores”.

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