Autor: Nuno Martins Neves
Durante quase dois séculos, os povos das ilhas dos Açores e Madeira tiveram uma moeda própria. Entre 1750 e 1932, a moeda insulana vigorou como forma de transação, diferente do Real que circulava no continente. E é essa história que António Miguel Trigueiros, engenheiro de formação, recuperou no livro “Nova História da Moeda Insulana 1750-1932”, apresentado ao público na quinta-feira, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.
“Na nossa época, a maioria das pessoas já não se lembra disto, é algo do tempo dos nossos bisavós. Durante mais de século e meio, a circulação monetária nos Açores era diferente da circulação monetária do continente. E era uma coisa estranha pois hoje temos o Euro e não passa pela cabeça de ninguém que haja um Euro aqui nos Açores que valha menos 20% do que o Euro que circula em Berlim ou na Áustria. Mas foi isso que aconteceu”, explica António Miguel Trigueiros.
Uma situação que acabou por surgir de uma necessidade: com os Açores nas rotas transatlânticas de naus e navios de várias nacionalidades, que acabavam por transacionar bens em moedas espanholas, brasileiras, inglesas, entre outras. “E isso foi assim durante muitos anos: as ilhas não tinham outra moeda que não fosse a moeda que os viajantes traziam e pagavam. A determinada altura, os açorianos e os madeirenses pediram ao Governo uma moeda própria, uma moeda que tivesse um cunho próprio, para que a moeda não saísse das ilhas”, diferente do Real, que circulava no continente.
A vontade foi feita e fez-se uma moeda distinta, mais fraca, cunhando-se assim, pela primeira vez, o termo “moeda fraca”. E mais fraca porque “pois se a moeda aqui valesse menos, as pessoas não eram tentadas a levá-las para o continente”.
A primeira experiência foi uma moeda com gravuras diferentes mas peso igual, que acabou por fracassar. “O que se pretendia era uma moeda diferente”, explica, quer no seu corpo metálico (peso, diâmetro, espessura), quer no seu rosto numismático (gravuras).
No século XVIII e XIX, as moedas valiam o que pesavam, era moedas mercadoria. “Quando se fazia uma moeda com menos peso que outra, ela valia menos. E foi isso que fizeram para os Açores: moedas de prata e de cobre com 20% menos do peso do metal. Portanto, desvalorizaram o corpo da moeda e aumentaram o valor facial. No continente, por exemplo, uma moeda de prata girava por 240 reis, aqui, a mesma moeda, girava por 300. E tinha gravado 300! Essa diferença foi fundamental: a moeda fraca insulana nasceu fraca no corpo metálico e fraca na gravura numismática”, assinala o autor.
Os primeiros registos datam de 1750, mas com mais vigor a partir 1794. A solução monetária vingou, criou raízes, de tal forma que as várias tentativas de colocar fim à moeda insulana foram sendo rechaçadas.
“Houve várias tentativas, ao longo do século XIX, de unificar a moeda açoriana com a continental, e a negativa reação veio sempre de forças vivas açorianas. Todo o processo parlamentar constitucionalista do século XIX, sempre que ia ao parlamento uma deliberação para acabar com a moeda fraca insulana, os deputados açorianos opunham-se”, reconta António Miguel Trigueiros.
Uma defesa feroz que teve, como episódio marcante, a oposição registada em 1879, quando a Madeira aceitou a unificação da moeda, por proposta do ministro da Fazenda, António Serpa Pimentel. “Os deputados açorianos não deixaram! Chegou a haver insurreição nas ruas de São Miguel, a população foi para a rua protestar que iam matar os filhos deles com a nova moeda. Pois pensavam que os impostos iam ser aumentados em 20%”.
Só em 1932 é que a moeda insulana chegou ao seu fim, por decreto do então ministro das Finanças, António Oliveira Salazar, em que se decretou a extinção da moeda fraca, reduzindo-se os impostos em 20%. A solução, curiosamente, que António Serpa Pimentel também queria implementar em 1879, mas sem sucesso.
“Esta história nunca foi contada em pormenor em toda a sua extensão”, refere António Miguel Trigueiros. A obra nasce da pesquisa efetuada, ao longo de dezenas de anos, em arquivos regionais, nos Açores e na Madeira, nos arquivos da Casa da Moeda em Lisboa, nos arquivos do Banco de Portugal, do Tribunal de Contas, bem como o levantamento de toda a informação e da correspondência que existia entre o Tesouro nos Açores, a Casa da Moeda e o Ministro da Fazenda. “Este livro é uma narrativa documental muito extensa, muito completa, acompanhada por uma narrativa numismática, ou seja, com uma leitura das próprias moedas. E não existe, nunca foi publicado nada semelhante, e é uma obra que eu espero que fique como uma referência da história insulana, tão importante e tão histórico”.
“Governo Regional teria muito a ganhar em propor moedas comemorativas”
O autor do livro considera que a moeda insulana açoriana podia “renascer”, por intermédio das moedas comemorativas. Lembrando que a política monetária nos dias de hoje é ditada pelo Banco Central Europeu - “o euro vale o mesmo na Guiana Francesa, nos Açores e em Bruxelas” - António Miguel Trigueiros recorda que esta história singular da Região podia ser recuperada doutra forma, encarando a moeda como uma peça de arte, um veículo de expressão cultural, pelo seu rosto numismático. “No Continente, estão a fazer-se moedas de euro comemorativas de acontecimentos que não têm grande valor histórico. E o Governo Regional teria muito a ganhar se começasse a estudar e propor à República a emissão de moedas comemorativas de temas açorianos”.