Açoriano Oriental
Vinte anos depois do incêndio no Chiado
Imagens do fogo ainda arrepiam bombeiros que o combateram
Ao dobrar a esquina da Rua do Alecrim com o Largo do Chiado, Mário Frias fica “arrepiado”. Vinte anos depois do incêndio que ajudou a combater, as imagens e sentimentos ainda estão bem presentes na memória deste bombeiro aposentado, hoje com 70 anos.
 Imagens do fogo ainda arrepiam bombeiros que o combateram

Autor: Joana Ramos Simões, Lusa/AO online
    “Apanhei muitos incêndios, já lá iam longos anos de bombeiro [entrou com 15 nos Bombeiros Voluntários de Lisboa], mas este foi único. A água parecia que se evaporava. Foi fora do normal. Sentimo-nos impotentes perante um incêndio daquelas dimensões”, recordou Mário Frias, num passeio pelo Chiado, na companhia da Lusa e de dois colegas dos Bombeiros Voluntários de Lisboa, que com ele combateram as chamas a 25 de Agosto de 1988.

    Naquela madrugada, o receio tomou conta dos três, mas a vontade de ajudar era mais forte.

    “Andávamos no fogo do Chiado em mangas de camisa. Não havia os fatos que há hoje em dia. Senti vontade de ir e medo de chegar às chamas, porque não podíamos. Foi uma mistura de sentimentos”, contou à Lusa Vitorino Bandarra, de 43 anos, desde os 16 nos Bombeiros Voluntários.

    José Cachinho, hoje comandante, já sabia ao que ia, mas mesmo assim assustou-se.

    “Estava em casa quando me chamaram, já tinha visto as notícias. Mas não me passava pela cabeça encontrar o que encontrei. Fiquei apavorado”, disse.

    O alerta do incêndio foi dado por volta das 05:00 do dia 25 de Agosto, o fogo foi dado como circunscrito pelas 13:00, e o rescaldo durou cerca de uma semana.

    Mário Frias, Vitorino Bandarra e José Cachinho passaram perto de 72 horas a combater o fogo, com pequenas pausas para comer, beber, tomar um duche quente e mudar de roupa.

    “Foi cansativo, mas com a ânsia de dar cabo dele, matá-lo o mais rápido possível, nem nos apercebemos do tempo que lá estivemos”, lembrou Mário Frias.

    Sentimento partilhado por José Cachinho: “senti dificuldades, como todos, mas envolvi-me no combate e não tive mais tempo para pensar”.

    Algumas imagens estão muito presentes na memória destes homens, vinte anos depois da tragédia.

    “Lembro-me perfeitamente como se fosse hoje de ver o meu colega a passar na maca completamente queimado. Aquilo ficou-me na retina e nunca mais me esqueço de uma coisa daquelas. Felizmente foi só aquele”, recordou Mário Frias, referindo-se ao único bombeiro morto no combate às chamas, Joaquim Ramos, do Regimento Sapadores Bombeiros de Lisboa, vítima de uma explosão.

    No meio de toda a confusão, Vitorino Bandarra conseguiu reter uma imagem “engraçada”.

    “O dono do Jerónimo Martins disse para retirarmos tudo o que estivesse nos frigoríficos para comermos. Às tantas comecei a ver pessoal a sair com caixotes debaixo do braço e a comer gelados enquanto o Chiado ardia. É uma daquelas situações que só visto”, lembrou, divertido.

    Mas as memórias “más” de Vitorino Bandarra são mais fortes. “Ver um colega morrer ao pé de nós e pessoas do meu bairro [Vitorino nasceu, cresceu e vive na Bica] ficarem sem emprego foi difícil”.

    O incêndio deixou cerca de duas mil pessoas no desemprego, muitas delas trabalhadoras dos armazéns do Chiado e do Grandella.

    Vitorino Bandarra viveu o incêndio como bombeiro, mas também como morador da zona.

    “Acompanhei a aflição dos meus vizinhos. Não sabiam qual ia ser o futuro deles. Uma, que estava há 17 anos no Grandella, acabou por emigrar, porque de um momento para o outro ficou sem emprego, sem nada”, recordou.

    José Cachinho, que também nasceu, cresceu e sempre morou na zona, ao ver o Chiado na fase de rescaldo, sentiu “um aperto no coração”.

    “Era um local onde eu ia fazer as minhas compras, ia passear com os meus amigos. Partia-me o coração olhar para aquelas ruínas. Agora tem uma alma nova e o trabalho foi espectacularmente bem feito”, disse.

    Quanto à possibilidade de Lisboa ter um novo incêndio como o do Chiado estão todos de acordo: “não é possível”.

    “Hoje em dia as situações são detectadas à nascença. A coordenação de meios funciona melhor. Os edifícios têm vigilância”, referiu José Cachinho, salientando no entanto que “toda a cidade histórica é um perigo”.
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