Açoriano Oriental
“É possível sermos uma imagem de marca de um produto referenciado a nível europeu” (Com vídeo)

André Antunes e Henrique Cordeiro. Agricultor, consultor agrícola e médico veterinário, e agricultor que há dois anos tem um projeto-piloto de agricultura regenerativa na ilha de São Miguel, respetivamente, falam sobre esta temática e abordam os desafios e resultados encontrados


Autor: Rafael Dutra/Arthur Melo

O que é e em que consiste a agricultura regenerativa?

André Antunes (A.A.): O objetivo é desimpedir o processo fotossintético nas plantas. Se nós conseguirmos usar tudo o que a natureza nos dá de grátis: a água, a luz solar, e o céu (...) conseguimos ter um rendimento além de mais limpo, muito mais eficiente e depender menos de fatores externos. (...) A ilha de São Miguel tem um potencial imenso para produção nativa, de erva, de mucilagem. Tem um clima muito bom para produção de leite. (...) Tentámos ir por aí, analisar profundamente os solos, ver exatamente o balanço dos solos ( ...) para manter uma produção saudável e evitar os excessos que muitas vezes levam a quebras de produção, levam à diminuição da saúde das plantas, e a mais suscetibilidade a pragas e doenças, que depois levam a mais aplicações de fitofármacos. (...) O objetivo só pode ser mesmo a rentabilidade e mais dinheiro no bolso do produtor ao fim do mês. A parte ambiental vem por acrescento (...).

Como o próprio nome indica, a agricultura regenerativa pressupõe um processo de regeneração dos solos?

A.A.: Exatamente. A ideia é conseguir produzir o mesmo, ou mais, do que a agricultura convencional. Muitas vezes também faço a ressalva: a agricultura regenerativa não tem de ser biológica, nós trabalhamos tanto com produtores convencionais, e produtores em modo de produção biológica, mas o objetivo é realmente conseguir este tipo de resiliência agroambiental.

A agricultura regenerativa tem como um dos objetivos reduzir a dependência dos agricultores da fertilização química? 

A.A.: Sim. Não necessariamente abolir este tipo de utilização de fator externo, mas certamente reduzir imenso e mitigar os efeitos da sua aplicação quando tem de ser aplicada. Até porque os processos de transição algumas vezes são longos. É um dos erros que aponto à agricultura biológica, (...)  muita gente sente aversão ao processo de método de produção biológico, porque muitas vezes as transições foram feitas rapidamente e há uma quebra muito grande de produção, por fundamentalismos. (...)

Que outros objetivos estão aqui subjacentes também?

A.A.: A parte da resiliência financeira, a parte agroambiental, a parte da qualidade de vida dos produtores. Esta regeneração pretende-se que não seja só de solos, mas que também seja comunitária. Oiço muitas vezes de clientes que acompanho que a agricultura passou a ser divertida de novo para eles. (...) Antigamente era mais um processo de repetição, um processo quase de rotinas, de fazer todos os anos a mesma coisa. Neste momento, começam a sentir-se mais como os orquestradores desta orquestra que é o ecossistema que eles gerem. Sentem um valor acrescentado ao seu trabalho de cuidadores da terra que lhes foi confiada. Esta parte da regeneração, é regeneração do próprio agricultor e da comunidade também. Muitas vezes o que acontece é o produtor que tem estes resultados sente a necessidade também de partilhar com outros. (...)

Quando é que ouviu falar pela primeira vez em agricultura regenerativa?

Henrique Cordeiro (H.C.): A primeira vez que ouvi falar na agricultura regenerativa foi exatamente quando a Bel Portugal convidou a nossa empresa a envergar um projeto-piloto em agricultura regenerativa. Na altura, ainda fiquei um pouco cético àquilo que viria, mas hoje sem dúvida foi a melhor decisão que tomei. Ainda é um pouco cedo para falar em vários fatores, mas decorridos os primeiros dois anos só nos fomenta a vontade de continuar (...).

Quais foram as diferenças que já notou na sua exploração e na sua atividade nestes dois anos?

H.C.: O que está a ser mais desafiante é trabalhar com pastoreio planificado e gerir as nossa pastagens para gerir o pastoreio. Passamos nas estradas e somente vemos as vacas na erva verde, hoje em dia na nossa empresa não é só isso: é olhar para os pastos e avaliar que alimentação temos. Há registos todos os dias de quantos animais estão a fazer o seu trabalho, desde a sua alimentação e o seu devido impacto animal nas plantas, para lhes estimular.

Coordena há dois anos um projeto-piloto de agricultura regenerativa na ilha de São Miguel. Como é que está a decorrer esta experiência?

AA: Foi desafiante ao início porque a comunidade agrícola com que nós começamos a trabalhar foi escolhida pela Bel, representando cada um uma fação do que era ou do que é a atividade pecuária de produção de lacticínios na ilha. (...). Mas, todos eles ao início demonstraram algum ceticismo (...).  Viram-se logo no primeiro ano grandes diferenças. As produções de milho tornaram-se muito mais homogéneas, houve menos problemas com doenças. A qualidade forrageira dos milhos, em geral, aumentou e foi por aí que os produtores começaram a perceber onde nós queríamos chegar, na parte da resiliência agropecuária e financeira. (...)

Tem sido fácil combater estas resistências iniciais que tem encontrado no terreno?

A.A.: Não, não tem sido fácil. É um processo que requer bastante insistência, mas também respeito para o contexto de cada um. Há pessoas que não estão preparadas, não vale a pena insistir, (...) nem toda a gente está preparada e nem toda a gente quer fazer isto. Isto requer da parte do produtor alguma preparação técnica.

Isto implica mudar o ‘chip’ da forma como se trabalha a terra.

A.A.: A minha missão está cumprida em qualquer projeto onde eu trabalho, quando eu acabo a minha atividade e o produtor fica ele com conhecimento e não tem de depender tanto de consultas externas (...) e consegue ter poder de resolução diariamente. (...) O produtor tem de perceber os mínimos de como é que funciona um solo na sua parte química, física e biológica, para poder tomar as melhores decisões para a sua produção agrícola.

Neste caso, os bons exemplos que vão começando a surgir, temos o caso do Henrique, podem servir para quebrar ou enfraquecer estas resistências, que são perfeitamente naturais.

A.A.: A melhor maneira como um produtor fica convencido é ver um dos seus pares com o qual se identifica. (...) Se houver um produtor de leite que tem resultados no campo e que faz um dia aberto na sua exploração em que mostra isso é muito potente. Aí torna-se num movimento quase cultural que ninguém pode parar: espalha-se quase como fogo. Qualquer produtor quer fazer o melhor trabalho, (...) às vezes nunca lhes foi dada a oportunidade de ver resultados feitos de outra maneira. Quando ele vê noutro, é muito potente. (...)

O Henrique falou no início que a primeira reação foi ceticismo. Como é que foi feita esta mudança de paradigma na sua atividade?

H.C.: Primeiramente foi reprogramar a mente. De seguida, passo a passo, houve uma reorganização da gestão dos solos. Tudo o que é feito nos nossos solos é registado, temos um 'cartão de cidadão' de cada solo em que registado todo o custo desde as fertilizações, à silagem de milho que fizemos lá. Foi um desafio saudável, hoje olho para todo esse sacrifício e empenho colocado, nesses primeiros dois anos, como uma porta de futuro. É possível fazer diferente, fazer melhor e temos a peça-chave que é o solo. O solo reproduz-se basta nós queremos. O pensamento é que amanhã nós agricultores vamos contribuir para uma humanidade mais saudável a colocar produtos mais saudáveis nas prateleiras para os consumidores.

Já tem alguns resultados que possa partilhar?

H.C.: Temos resultados já nos primeiros dois anos, são muito agradáveis (...). Precisamos de amadurecimento, de avaliar e reavaliar tudo o que está a ser feito. Não quero cair na euforia de que isso é milagroso, não é. Milagres não existem, existe muito trabalho por trás disso. No prazo de um ano, um ano e meio, a nossa empresa estará preparada para passar testemunho daquilo que é a realidade da agricultura regenerativa. (...) A nível do impacto de rentabilidade, posso dizer que faz uma diferença brutal aquilo que fazíamos no passado para aquilo que se passa hoje.

Falamos há pouco da enorme dependência que a agricultura tem da fertilização artificial. Porque se dá este fenómeno?

A.A.: Fundamentalmente porque é mais fácil, não requer muita racionalização, é o hábito. (...) Os produtores estão sob uma pressão imensa para produzir quantidade de leite por vaca, enquanto na verdade devíamos estar a falar de qualidade e quantidade por hectare. (...) [A agricultura regenerativa] é um processo complexo e as pessoas, de um modo geral, fogem da complexidade, gostam de fazer uma coisa mais simples, de fazer sempre o mesmo. Ao início fazer a mudança de ‘chip’ custa, porque requer mais trabalho, às vezes mais mão-de-obra para movimentar os animais. No caso do pastoreio é preciso fazer um pouco mais de movimentação. No caso das fertilizações é preciso fazer formulações que se fazem na própria exploração. Quem faz e começa a ter resultados fica viciado, é o que tenho observado. (...)

Essa pressão para produzir mais e melhor pode ser um obstáculo?

A.A.: Certamente. (...) É possível produzir mais e melhor (...), o que tem acontecido muito é que os processos de transição tem sido feitas por pessoas que não estão capacitadas, muito rapidamente querem passar do oito ao 80 e leva a quebras de produção. (...)

O Henrique deixou-se levar por esta pressão de ter produzir mais e melhor? Ou há um caminho diferente que pode ser tomado de forma mais sustentável?

H.C.: (...) Estamos a encontrar na agricultura regenerativa que é possível fazer mais e melhor. Nesses dois anos mudamos tudo, todos os terrenos da nossa empresa estão em modo regenerativo. Há praticamente um ano e três meses que não compramos fertilizantes sintéticos. (...) Estamos a redescobrir a nossa atividade. (...) Hoje foi possível num hectare e meio dobrar os dias de pastoreio que era do passado e o custo é menor, completamente menor daquilo que era, com muito maior rentabilidade.

Através da agricultura regenerativa é possível ter uma alimentação menos dependente do milho de silagem. Quanto tempo pode levar esta transição, ou seja, depender menos dos concentrados e do milho de silagem para uma alimentação mais à base de erva?

H.C.: Ainda não tenho capacidade na nossa empresa de responder quantos anos precisamos de trabalho para deixar fazer a produção de milho. A silagem de milho é importante, é um alimento de alto poder energético para os animais.  (...) Vamos com tempo, passo a passo, descobrindo novas culturas, novas misturas, outro tipo de plantas, outras alternativas. (...)

A.A.: O objetivo deste projeto não é deixar de utilizar os concentrados ou os milhos de silagem, é sim depender menos deles. (...) Nós estamos a olhar em vários pontos, um deles é a produção de milho de silagem mais eficiente: produzir em diversas áreas mais e melhor milho o que pode levar a que se reduza a área com a mesma produção. Isso é possível e até há um produtor que produziu muito mais milho de silagem na área que costuma a fazer. (...) [Mas], se uma pessoa faz mais deve tentar crescer melhor e não maior. (...)

Henrique, também trabalha com um processo de melhoramento genético na sua exploração. Tem sido possível conciliar estas duas questões, o melhoramento genético dos seus animais e tirar partido dele com as práticas da agricultura regenerativa?

H.C.: Sim, sem dúvida. (...) . Entrar na agricultura regenerativa é porque esse projeto de alteração do tipo de vacas (...) está a correr bem. (...) Acredito que nos próximos três anos possamos ser uma exploração, uma empresa produtora de leite nos Açores com 100% de animais cruzados. (...)

Como podemos implementar mudança de paradigma de maneira estável em maior escala e tentando quebrar barreiras?

A.A.: Para mim, o caminho tem a ver com a multiplicação através dos agricultores, ou seja, ter acesso a algum deste conhecimento e depois implementá-lo em explorações piloto, sejam elas comerciais ou explorações só mesmo de demonstração. (...) E, a partir daí haver uma multiplicação pelos agricultores eles próprios, inclusivamente tornarem-se consultores e poderem transmitir esse conhecimento. (...)

Henrique, tem sentido que através do seu projeto tem suscitado a curiosidade dos seus pares?

H.C.: Sim, principalmente na minha zona, há sempre uma pergunta se está a correr bem, se vai dar certo. (...) É possível sermos uma imagem de marca de um produto referenciado a nível europeu. Esse projeto de agricultura regenerativa nos Açores, em produção de leite, é único na Europa. (...)

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