“É um organismo inútil porque não cumpriu nada daquilo que lhe estaria destinado”, diz o escritor, para quem “uma comunidade de países de língua portuguesa, que inclua Brasil e Áfricas, não pode incluir a Guiné Equatorial, que é uma ditadura dum fulano que meteu lá muito dinheiro, e quis também pertencer, no seu país onde se fala o espanhol”.
Uma comunidade “que não cumpre um único desígnio, nomeadamente, da fraternidade entre os povos e os países, não existe”, afirma.
Para João de Melo, natural dos Açores, a CPLP “ou era extinta, ou recriada”, considerando “que não se consegue perceber o que faz nem o que fez pela língua, nem pela política, muito menos pela sociedade”.
“É uma espécie de deriva que a gente inventou”, defende.
Neste ano em que se assinalam os 50 anos das independências das ex-colónias, lamenta também que “se continue à espera da justiça social e da fraternidade, e agora, na Guiné-Bissau, da liberdade”, tendo em conta a tentativa de golpe de Estado de 26 de novembro naquele país africano lusófono.
As palavras do escritor, que tem apontado a ausência de personalidades da cultura no espetro do comentário nacional, surgem num contexto de celebração dos 50 anos de carreira literária, ocasião para publicar “Novas Fases da Lua”, um diário que percorre os anos de 2017 a 2024, e onde partilha pensamentos mais íntimos e reflete sobre o mundo.
Após o regresso de Angola, para onde foi destacado como furriel enfermeiro, licenciou-se em Filologia Românica, foi professor e adido cultural em Madrid, e abraçou a escrita, sendo “Gente Feliz com Lágrimas” o seu romance mais conhecido.
A insularidade e a guerra, que percorrem a sua vasta obra, deixaram marcas e memórias “infernais”, mas o autor afirma que a memória é uma ferramenta poderosa porque condiciona a sua “consciência, moral, política” e ajuda-o a “escrever diários e a ter opinião”.
Até porque, acrescenta, “a falta de memória favorece os argumentos da extrema-direita”.
A este propósito, e olhando para o crescimento do Chega em Portugal, o escritor mostra-se perplexo, embora esperançoso numa “lição” dos portugueses, nas próximas eleições.
“Essa voz [de André Ventura] é perfeitamente reversível e o povo português vai acordar e dar já uma lição, com a reabilitação dos partidos democráticos e a varridela dessa gente para o canto escuro onde estava e que quase ninguém dava por ela”, considera.
“É um partido de um homem só”, sublinha o escritor. “Talvez estejamos ali a ver nascer um ditadorzinho, mas creio que a democracia vai pô-lo no lugar, talvez até de uma forma mais definitiva”.
Questionado sobre o facto de o Chega ser atualmente a segunda força política, e sobre o que isso diz sobre os portugueses e o país, João de Melo responde que “a democracia já tem 50 anos e as pessoas habituaram-se ao status quo e agora estão a experimentar uma ideia provocatória e anti democrática, para ver no que dá”.
Mas deixa um alerta: “não sabem o perigo de perder a liberdade e a democracia, mas um dia vão aprender isso. E de que maneira!”
A dobrar os 50 anos de carreira literária, João de Melo deixa a promessa de publicar novos diários e o desejo de escrever um romance sobre a cidade de Lisboa.
“Agora quero homenagear a longa vida que Lisboa me deu e que eu dei a Lisboa, com gratidão e até felicidade. E porque foi aqui que eu me fiz homem”.
