Açoriano Oriental
Grande Reportagem
"Descontracção" com a Companhia de Jesus
Duzentas crianças de famílias necessitadas de Rabo de Peixe, dois padres jesuítas, setenta e um jovens animadores estudantes universitários do Continente, conseguem o "milagre" de tornar uma “escola”em tempo de férias num espaço de descontracção, atractivo e de aprendizagem de valores...por dez dias!
"Descontracção" com a Companhia de Jesus

Autor: ESTÊVÃO GAGO DA CÂMARA
"Descontracção e amizades", resume, para o jovem pré-animador, Ricardo, o que faz a Colónia de férias ser irresistível e deixar saudades a todos os que a frequentaram.
Desde há cinco anos, centenas de crianças, dos cinco aos catorze anos passaram pela Colónia de férias de Rabo de Peixe. São seleccionados com a ajuda fundamental das irmãs, Criaditas dos Pobres, que há mais de vinte e cinco anos vivem entre as famílias mais necessitadas dos bairros pobres. A Companhia de Jesus encarregou-se de, uma vez no ano durante dez dias, proporcionar às crianças o espaço e um tempo para viverem a idade que realmente têm.“Descontracção”, significa conseguir dar tréguas à luta por tudo e por nada pela sobrevivência, que as crianças têm em Rabo de Peixe desde que nasceram. O “descanso”, cantar, dançar, desenhar e brincar, permite fazer coisas inimagináveis no resto do ano. Coisas, tais como pensar em si próprios, conviver com outros, sem “garrear”, olhar e descobrir a natureza e o mundo que os rodeia e - a Colónia é católica- , ouvir falar de, e encontrar, Deus.
É impressionante o que “o método da afectividade” consegue em pouco mais de uma semana!De 3 de Agosto até quarta-feira, dia 13, a Colónia voltou a semear no coração e nas memórias experiências únicas e intensas de amizade e afecto. “É uma gota de água...mas fica”, afirma o padre Paulo Teia, que foi mandatado pela Companhia de Jesus para ser o assistente do projecto de Rabo de Peixe. A “brincadeira” e a “descontracção” durante poucos dias conseguem o inimaginável em disciplina e organização. Na festa de encerramento, no salão paroquial repleto, quando o padre Paulo pede silêncio quase que se ouvem as moscas. Para tanto basta levantar um braço e todos mandam calar todos com um único chiuuuu...É impossível resistir a não imaginar o fracasso absoluto que resultaria, em circunstâncias idênticas, de igual pretensão a pedido de outros quaisquer “educadores” do sistema oficial. Os mais novinhos estão sempre a pedir colo e os outros, beijos e fortes abraços. Mas, não há choros nem cenas...”há ocasiões para tudo” disse-nos o padre jesuíta que comanda a Colónia. Se existe método, ele é inspirado pelo modelo das Escravas do Coração de Jesus, mas a “linguagem” de sucesso é, sem dúvida, o “rap” e o “hip-hop”que as próprias crianças naturalmente “impuseram”. Resulta, surpreendentemente bem. O padre Miguel Gonçalves Ferreira observa, em jeito de recomendação, que o hip-hop resultaria com sucesso como “método pedagógico” na escola pública de Rabo de Peixe...Registe-se que a Colónia conseguiu autonomia, depende do trabalho de um ano de angariação de ajudas. Sem dependências institucionais.


“Aquilo que fazemos é uma gota no oceano...mas está lá!”
O padre Paulo Teia vive com os pobres do bairro do Pragal em Almada. Foi nomeado pela Companhia de Jesus assistente para o Projecto de Rabo de Peixe.
Ao cabo de cinco anos a “colónia” conseguiu já produzir efeito, deixou marcas nas crianças de Rabo de Peixe?
Sim. Ao longo destes cinco anos tem sido esse, o estímulo. Não só para a equipa de animação mas para todas as pessoas envolvidas no projecto, tem sido o facto de nos apercebermos de que realmente todas essas crianças ao longo dos cinco anos foram despertando para novas realidades.
Houve uma empatia forte entre a nossa presença e o mundo donde eles vêm. Uma empatia que acho que foi proveitosa para nós mas também para eles de uma maneira muito concreta.
Ao início pensávamos que seria difícil até pela questão da linguagem, sabemos que em Rabo de Peixe se fala num dos mais cerrados dialectos dos Açores. Parecia-nos que este seria o obstáculo maior que iríamos encontrar, o da linguagem, mas conseguimos passar para eles aquilo que sentíamos que era o que melhor tínhamos para dar.
Acabámos por encontrar uma linguagem comum e essa linguagem teve frutos. E, ao reconhecermos esses frutos sentimo-nos estimulados a vir e a apreciá-los, isto é, realmente a forma como foram mudando, foram mudando…
A afectividade é o segredo dessa relação?
Estas crianças buscam muito um espaço onde possam viver aquilo que lhes toca viver em cada momento da vida. E aquilo de que por vezes nos apercebemos é que se queimam etapas.
Passam muito facilmente da infância ao estado adulto pelas exigências do trabalho ou pela vida em que estão envoltos a nível familiar mas a nível também da realidade social de Rabo de Peixe.
O facto de lhes darmos oportunidade de serem crianças, de poderem estar no seu espaço próprio, isso é uma das maiores experiências de paz e relaxamento…de forma “descontraída”, como dizia o Ricardo ( jovem que durante cinco anos frequentou a colónia).
É uma palavra muito bonita, porque é realmente como eles se sentem…encontram um colo.
Por isso, a parte afectiva é muito importante, encontram um colo, mas um colo onde eles se podem “abrir” e podem encontrar um espaço para dizer quem são realmente…
Qual é o lugar da religião na Colónia? A descoberta de Deus é o objectivo?
O nosso objectivo é que estas crianças se sintam elas próprias e descubram e tenham gosto pela Vida.
Esse é o grande objectivo, onde Deus necessariamente está presente e é certamente a razão última de tudo isto! É Ele que nos dá esse gosto de Vida.
Mas, o gosto pela Vida passa por coisas primeiras, como contactar com o adulto que não exerce necessariamente violência para chamar a atenção, como encontrar a possibilidade de se relacionar com os outros meninos sem ser a “garrear”…isso são para nós os valores mais fundamentais que se eles os descobrirem os ajudará depois mais tarde a descobrir também a presença de Deus, porque eles sabem que têm a presença de padres na Colónia e que os animadores vêm em espírito de missão … celebram missa todos os dias e têm um sentido muito profundo do que é a vida de Jesus e a maneira e o modo como Jesus quis estar com as outras pessoas.
Como é que é no resto do ano, nunca sentiu necessidade de vir do Continente para intervir quando é necessário…em Rabo de Peixe?
Esse é realmente o grande desafio não só para a direcção do projecto mas também para os animadores.
Quando saímos de Rabo de Peixe, quando saímos desta realidade, sentimos que fica muito por fazer e que se calhar não somos os mais aptos a fazê-lo…fica um vazio muito grande, uma incapacidade, a sensação de realmente não podermos fazer mais… porque não podemos fazer mais.
Mas, aquilo que fazemos é significativo, é sempre aquela gota de água que no oceano, pois, passa desapercebida, mas está lá…e dá volume ao oceano.
E, para estas crianças penso que é uma gota se tornou já numa pequena onda.



Comentário
O “sistema” educativo deveria ser obrigado a conhecer, a ver com os seus próprios olhos, como vive e funciona a Colónia dos meninos de Rabo de Peixe dirigida pela Companhia de Jesus.
Os padres e os jovens animadores da Colónia não são, nem têm pretensões a ser, “rappers”, mas não tiveram qualquer problema em tomar o ritmo preferido da criançada de Rabo de Peixe. Autónomos e descontraídos, sem demagogia, perceberam que, entre outras coisas, para transmitirem conhecimentos e valores deviam fazê-lo ao som da batida dos “alunos”. Os resultados impressionam qualquer um.
O sucesso de qualquer objectivo pedagógico assenta numa escola atractiva, onde em vez de equipamentos de luxo existem relações de afectividade verdadeiras, naturais e intensas entre as crianças e os professores. É esse o segredo da Colónia, o espaço físico pouco ou nada importa, o essencial é a construção de laços de amizade entre todos, crianças, adultos, de todos entre si. Assistentes sociais, técnicos, dirigentes e gestores de “projectos” públicos e governamentais, professores, autarcas, deputados e governantes teriam tudo a aprender…mas, no final teriam de confessar, frustrados: “mas, se eu não sei dançar hip-hop, nem tomo banho de mar com as crianças, como fazem os padres jesuítas e os seus animadores… não vou a lado nenhum!”
Assim deveria ser a escola pública, especial, para os meninos pobres de Rabo de Peixe! Objectivos: descontrair, fazer amigos aprender a gostar da escola, da natureza e, já agora, descobrir Deus. Depois, talvez, conseguir ler e contar. Em vez disso insiste-se na “integração” igualitarista, que tem tido o insucesso como regra, a iliteracia, a violência, a marginalidade e a negação da cidadania como resultado final.
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