Autor: Lusa/AO Online
A maioria dos crimes ainda é silenciada por mulheres que vivem aterrorizadas por aqueles que amaram.
Maria (nome fictício) tinha entrado nas urgências e estava na ginecologia quando disse que não queria ter alta. As enfermeiras estranharam, mas não disseram nada. Não se queriam meter na vida da paciente. Maria acabou por desabafar que era vítima dos maus-tratos do marido e tinha medo de regressar a casa. O caso foi revelado esta semana por uma enfermeira, durante um colóquio sobre violência doméstica que decorreu na Escola Superior de Enfermagem, em Lisboa.
Mas esta é apenas uma história de um crime que atinge milhares de mulheres. Todos os dias, em Portugal, as forças de segurança registam 76 novos casos de maus-tratos. E, regra geral, quando ali chegam, as vítimas já passaram por um longo processo de humilhação e subordinação.
"Os estudos indicam que as mulheres só denunciam a situação depois de 35 ocorrências", disse à Lusa Susie Johnson, responsável pela Secção para as Mulheres do Washington Office of Public Policy (Estados Unidos), que conta com um milhão de sócias.
A demora em delatar o crime tem várias razões. Além do medo, "normalmente o agressor é o homem em quem sempre confiaram e que amaram e, muitas vezes, é o pai dos filhos", explica a presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), Teresa Féria.
"Se, por um lado, têm medo de que possa voltar a acontecer, também têm a esperança de que as coisas vão mudar. Há todo um relacionamento e carga afectivos envolvidos", acrescenta João Lázaro, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio à Vitima (APAV).
"Muitas vezes, o crime perpetua-se durante anos e anos", sublinha, frisando que, apesar de actualmente existir menos estigma social sobre quem se assume como vítima, ainda "há casos de mulheres que estão assim durante 10, 15 anos ou mesmo 17 anos".
O ciclo de violência tem normalmente três fases: começa pela violência física ou psicológica, depois segue-se a fase da lua-de-mel, em que a vítima acredita no agressor, e finalmente a fase da tensão, quando começa uma clara perseguição que vai levar ao crime.
"Na psicologia, estas mulheres estão classificadas tal como as vítimas de atentados terroristas", compara a presidente da APMJ, explicando que nem as violações que ocorrem na fase adulta têm tanto impacto psicológico. A razão é simples: o agressor é normalmente um desconhecido.
Apesar da violência do crime, a percentagem de casos que sobe às barras dos tribunais é ínfima.
Segundo os dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2008, do Ministério da Administração Interna, divulgados em Março, as forças policiais registaram uma média de 2312 queixas mensais.
Apesar de haver mais de 20 mil queixas por ano, apenas uma em cada dez mulheres avançou com um processo no ano passado. Mas os números mostram uma evolução: as acusações em tribunal duplicaram nos últimos dois anos, passando de 1033 em 2007 para 2420 em 2008, assim como as condenações, que passaram de 526 para 1154.
Uma das razões que leva as mulheres a permanecerem no silêncio prende-se com a falta de confiança no sistema judicial e de segurança, defende Elisabete Brasil, da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
Teresa Féria lembra um estudo espanhol que indica que no país vizinho "morre-se muito durante o período entre o processo e a audiência do agressor".
Mas há muitos casos que nem chegam à fase de acusação porque não se consegue prova. "São crimes que se passam entre quatro paredes, não há testemunhas. Há agressores que não permitem que as vítimas recorram aos hospitais ou a outros serviços de saúde. Trancam-nas em casa, ameaçam-nas nos dias posteriores", lembra Elisabete Brasil.
Para Susie Johnson, é preciso sensibilizar e envolver toda a sociedade para que este deixe de ser um crime escondido. Até porque, alerta, "uma em cada três mulheres é ou vai ser vítima de violência num momento da sua vida".