Açoriano Oriental
Médicas implementam consulta de Incongruência de Género no HDES

Pela iniciativa das médicas Mariana Bettencourt e Catarina Senra Moniz nasceu, há dois meses, no Hospital do Divino Espírito Santo (HDES), em Ponta Delgada, a consulta de Incongruência de Género.

Médicas implementam consulta de Incongruência de Género no HDES

Autor: Carolina Moreira

Este pequeno passo na garantia de cuidados de saúde especializados na Região constitui um grande avanço para a população transgénero açoriana que pode agora receber o acompanhamento necessário no processo afirmativo de identidade, sem ter obrigatoriamente de se deslocar ao continente.

Mas em que consiste a Incongruência de Género? Segundo a psiquiatra e sexóloga clínica Mariana Bettencourt, trata-se de uma “condição em que aquilo que a pessoa sente que é difere do género que lhe foi atribuído à nascença de acordo com os carateres sexuais primários, isto é, os genitais”.

Numa entrevista ao Açoriano Oriental, a médica explica que esta condição, regra geral, causa muito sofrimento aos indivíduos, tornando esta população particularmente vulnerável e suscetível ao desenvolvimento de perturbações mentais.

“Muitos pacientes trans são acompanhados na psiquiatria porque sabemos que se trata de uma população particularmente vulnerável ao desenvolvimento de perturbações psiquiátricas, o que está muito relacionado com a forma como são estigmatizadas e vitimizadas por serem diferentes”, afirma.

Mariana Bettencourt esclarece que, até há dois meses, estas pessoas eram vistas na psiquiatria do HDES e, depois, encaminhadas para centros especializados e multidisciplinares em Coimbra, Lisboa e Porto, uma situação muitas vezes “difícil” devido à deslocação e à falta de suporte social e emocional.

“Estamos a falar de pessoas que, muitas vezes, não têm esse suporte social, as próprias famílias afastam-se ou rejeitam-nas e isto é altamente impeditivo para esta população”, salienta.

Com o intuito de colmatar a situação, Mariana Bettencourt e Catarina Senra Moniz implementaram a consulta de Incongruência de Género no HDES, em colaboração com o projeto A(MAR) da APF-Açores (Associação para o Planeamento Familiar e Saúde Sexual e Reprodutiva).

Segundo a endocrinologista Catarina Senra Moniz, em apenas dois meses, estão a ser acompanhados 10 pacientes, todos de São Miguel, sendo referenciados através dos médicos de família, do centro A(MAR) e do serviço de psiquiatria do HDES. “Até já temos pacientes que estão a regressar à região para continuar cá o tratamento”, realça.

Mas como funciona a consulta de Incongruência de Género? Segundo Mariana Bettencourt, “numa primeira fase, fazemos um historial do desenvolvimento da pessoa, em que se confirma a incongruência de género que pode estar ou não associada a uma disforia, ao sofrimento que está associado à condição”.

A médica adianta que, enquanto psiquiatra, também avalia “se há alguma perturbação psiquiátrica, como algum quadro depressivo ou de ansiedade que também precise de intervenção. Depois a pessoa é encaminhada para a consulta de endocrinologia, se pretender fazer hormonoterapia, ou para outra consulta de acordo com as suas necessidades”, esclarece, constatando que existem “vários procedimentos afirmativos de género e o paciente deve fazer aqueles com que se sente mais confortável e que acha que vão diminuir a sua disforia”.

Já na consulta de endocrinologia, Catarina Senra Moniz explica que “é sempre feita uma avaliação antes de iniciar a terapêutica”. “Muitas vezes, é necessário avançar com outros procedimentos, tais como a cessação tabágica, fator muito importante principalmente na terapêutica com estrogénios porque aumenta o risco embólico e é um fator que temos mesmo de eliminar”, destaca, adiantando que, “em cerca de três meses, conseguimos avançar com a terapêutica hormonal”.

Nesse sentido, a endocrinologista ressalva que o hospital assegura uma “boa e rápida” resposta aos pacientes, apelando por isso a que “não tenham a tentação de fazer a terapêutica hormonal por conta própria, porque o risco é muito elevado. Não vale a pena e nós estamos cá para ajudar e para aliviar o sofrimento”, diz.

Segundo Catarina Senra Moniz, atualmente, o HDES permite a realização do acompanhamento psiquiátrico e do tratamento hormonal no processo afirmativo de identidade, no entanto, “por falta de resposta, as cirurgias continuam a ser realizadas no continente”, sendo o Hospital da Universidade de Coimbra “o nosso principal centro de referenciação”.

“Há procedimentos simples, como por exemplo uma mastectomia, que poderiam ser realizados cá. Por outro lado, a cirurgia de afirmação genital é muito diferenciada e deve ser realizada só em centros especializados, como Coimbra ou Porto”, alerta.

A especialista adianta ainda que, neste momento, estão a ser estabelecidas parcerias com outras especialidades médicas dentro do hospital de Ponta Delgada para melhorar o acompanhamento da população transgénero, tais como “psicologia, nutrição e otorrinolaringologia para a cirurgia e treino da voz, porque se trata de um grande obstáculo para a pessoa trans feminina”, além da “ginecologia e obstetrícia para a preservação da fertilidade”.

Para as médicas, a implementação da consulta de Incongruência de Género no HDES era “necessária e urgente” para assegurar cuidados de saúde diversificados e especializados e eliminar “barreiras”. “Esta consulta pode ser a porta de entrada para outros cuidados de saúde que esta população se calhar não procura porque não se sente segura”, esclarece Mariana Bettencourt.

Com o intuito de dar mais um passo na eliminação destas barreiras, a psiquiatra adianta que já está em preparação um “guia” para os médicos de família nos Açores, “onde consta uma espécie de glossário dos termos adequados, onde se explica que tipos de cuidados é que as pessoas trans podem precisar e como é feita a referenciação para a consulta no HDES”, afirma.

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