Açoriano Oriental
“É um autêntico choque para o qual ninguém está preparado”

Nívia Pires, natural de São Roque do Pico, tem 43 anos. Mãe de Júlio há quase seis, companheira de José há 14, é professora de alemão e de inglês, efetiva na Escola Secundária Manuel de Arriaga, no Faial. Há menos de dois anos, foi diagnosticada com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Presa no corpo, Nívia comunica apenas graças ao movimento dos olhos


Autor: Célia Machado/AO Online

A esclerose lateral amiotrófica (ELA) é uma doença neurológica degenerativa rara. Os músculos enfraquecem e o corpo deixa de responder. Em novembro de 2021, Nívia Pires deixou de andar e no mês seguinte a fala ficou quase impercetível. Comunica com o exterior através de um sistema de alta tecnologia que lhe permite escrever pelo controlo ocular.

Esta não é uma entrevista sobre a ELA. Trata-se, sim, de dar voz a quem já não a tem e de, se possível, levar o leitor à reflexão sobre a sua própria existência.

Quem era a Nívia antes de lhe ter sido diagnosticada a ELA?

Nunca gostei de falar de mim, por isso é difícil escolher as palavras certas. Antes d’ELA era conhecida por ter mau feitio, o que chamo de personalidade vincada (risos), muito teimosa. Sempre fui uma pessoa e profissional dinâmica e criativa, que gostava de abraçar projetos. Tinha um sentido de humor refinado e, por vezes, não filtrava o que dizia pois nunca gostei de “engolir sapos”. Tinha uma carapaça forte e não gostava de mostrar as minhas fragilidades. Sempre fui mais de ouvir do que de falar, mais de dar do que receber. Era uma mãe e mulher ativa e cuidadora, gostava de organizar jantares e ter amigos por perto. Sempre me preocupei em ajudar e divertir os outros.

Quem é a Nívia agora?

Não vou mentir, sou uma pessoa mais triste, revoltada, emocional e de choro fácil. Também sou mais observadora e atenta às pequenas coisas que me rodeiam. Às vezes, quero controlar as coisas, pois cedo comecei a tomar conta de mim e dos outros. Nunca me resignei com o diagnóstico. Esta não é uma doença fácil que se consiga aceitar, pois limita-me a muitos níveis, e estar dependente de outros para quase tudo não é nada fácil para alguém que raramente pedia ajuda. Sempre fui muito independente. Muitas pessoas que julgava próximas afastaram-se, mas sinto-me agradecida por outras que se aproximaram mais e me ajudam e é com essas que devo contar.
Todos os dias sinto-me grata pelo Homem que cuida de mim e do nosso filho, é o nosso herói. Vivo um dia de cada vez e tento aproveitar os momentos com as pessoas que amo.

Alguma vez tinha ouvido falar nesta doença antes do seu diagnóstico?

Todos conhecemos o caso de Stephen Hawking, mas não conhecia pormenores da doença nem sabia que havia casos nos Açores. É daquelas doenças raras que pensamos que estão “longe” e que não nos acontecem. Também o desafio do balde de água fria, apesar de se ter tornado banal nas redes sociais, era para despertar as pessoas para a doença.

Quais foram os primeiros sintomas?

Em março de 2020, comecei a notar formigueiro nas mãos, que desvalorizei, e fraqueza na perna esquerda, que me fazia desequilibrar nas aulas de ginástica. Depois notei, ao lavar o cabelo, que o braço esquerdo tinha menos força, não acompanhava os movimentos do direito ao mesmo ritmo.

Foi fácil chegar ao diagnóstico?

Não foi nada fácil. Demorou cerca de oito meses desde os primeiros sintomas até ao diagnóstico. Se calhar tinha sido mais rápido se tivesse ido logo para Lisboa, mas vivia-se no início da pandemia, aulas “online”, um filho pequeno e fui deixando arrastar. Em maio, decidi ir a uma urgência, porque comecei a ter cãibras nas pernas e fasciculações no braço, mas mandaram-me para casa tomar relaxante muscular. Descontente, procurei um osteopata que me aconselhou a ser vista pela esposa, médica de medicina interna. Também consultei um médico privado de medicina geral e ambos conseguiram que fosse ao neurologista à Terceira, em junho. Lá, fiz vários exames, entre eles ressonância magnética ao cérebro, estudo do sono e punção lombar. O neurologista foi extremamente desagradável, excluiu esclerose múltipla e mandou-me para casa, esperar pelos resultados. Umas semanas mais tarde mandou-me um relatório porque pedi ao Conselho de Administração do Hospital do Santo Espírito, pois recusou-se a falar comigo ao telefone. O relatório aconselhava fazer uns exames ao coração e tomar uma aspirina por dia. Insatisfeita e com os sintomas a piorar, fui insistindo no Centro de Saúde, até ter consulta com o meu atual neurologista e voltei à Terceira para fazer ressonâncias à coluna. O diagnóstico é por descarte de hipóteses. Em setembro, fui fazer uma eletromiografia a São Miguel e esse exame foi decisivo. Isto tudo muito resumido, acredite... A 21 de outubro recebi o diagnóstico do meu neurologista e em novembro, a conselho deste, fui confirmar o diagnóstico a Lisboa com o Professor Mamede de Carvalho, o especialista mais conceituado na doença. Fui com alguma esperança, mas, infelizmente, o diagnóstico confirmou-se.

Como é receber uma notícia dessas? Há revolta, medo?

É um autêntico choque para o qual ninguém está preparado. Não conseguia parar de chorar e pensar como ia ser a minha vida, como ia cuidar do meu filho. E depois de começar a pesquisar sobre a doença, tempo médio de vida e ler alguns testemunhos fiquei assustada mas cada caso é um caso. Após o choque veio a revolta, não aceitava que acontecesse comigo, pois sempre ajudei os outros, não é justo, nunca aceitarei. A pergunta que se faz logo é “Porquê eu?” mas, como uma pessoa me disse na altura, “E por que não?”. E é verdade, ninguém sabe para o que está.

O que sente agora?

Vou-me adaptando aos avanços da doença que tem evoluído rápido demais, fiquei numa cadeira de rodas no espaço de um ano. Vivo um dia de cada vez. É um desafio diário de resiliência, tolerância e paciência para mim e para quem cuida de mim. Há dias em que me sinto uma rainha, com os mimos que me dão; há dias em que me sinto um fardo para o meu companheiro, que abdica de muita coisa para cuidar de mim; há ainda dias em que só me apetece chorar; e outros em que me deixo levar e a vida fluir.
Emociono-me sempre que falo na doença, principalmente se encontro pessoas que não via há muito tempo ou quando o assunto envolve o meu filho ou o meu companheiro. Contudo, também tenho momentos felizes e continuo a gostar de dizer as minhas piadas e de me rir d’ELA.

Como têm sido estes meses? O que mudou na sua vida?

Desde o diagnóstico tenho sessões de fisioterapia e terapia da fala duas vezes por semana e terapia ocupacional uma vez. Tenho consultas mais ou menos regulares de neurologia, fisiatria e psiquiatria no Centro de Saúde da Madalena e de pneumologia, gastroenterologia e estomaterapia no Hospital da Horta.
O meu companheiro está em teletrabalho para cuidar de mim, o que inclui muito tempo entre higiene, alimentação, tratamentos respiratórios e deslocações. É tudo a um ritmo mais lento. E temos o nosso filho que também precisa de atenção.
A vida mudou muito, deixei de trabalhar e de fazer as tarefas do dia a dia. Fazia muitas atividades com o meu filho que agora não consigo, gostávamos de sair, jantar fora os três, mas tudo tem limites para mim. É engraçado que, agora, apercebo-me de que alguns espaços bem conceituados e cotados no “Tripadvisor” e demais, de restauração, por exemplo, não têm acesso para pessoas com mobilidade reduzida, muito menos instalações sanitárias onde entre uma cadeira de rodas.

É mãe do Júlio. Como se explicam a uma criança todas estas alterações, que doença é, quando até para os adultos é difícil de aceitar?

O que se responde a uma criança de cinco anos quando pergunta se a mãe vai andar outra vez? Dói muito, é um aperto no coração. Não explicamos pormenores, respondemos a alguma pergunta que faça, mas não faz muitas. Penso que se foi adaptando, tal como nós. Percebe que a mãe tem limitações e que tem de ajudar. Aproximou-se muito mais do pai pois sabe que é dele que depende. Explica com orgulho, aos amigos, como é que a mãe comunica com os olhos.

Nos Açores os serviços de saúde estão preparados para prestar apoio aos doentes com ELA?

No caso da ilha do Pico, que é o que posso falar por experiência própria, acho que os serviços não estão preparados porque, felizmente, há raros casos. Tenho muita sorte com as minhas terapeutas, que, apesar de nunca terem lidado com casos de ELA, sempre deram o seu melhor e entraram em contacto com os profissionais da Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA), da qual me tornei logo sócia, para saberem como proceder e tirar dúvidas. Também foram elas que trataram do meu processo para a aquisição dos equipamentos necessários, alguns dos quais ainda não recebi passado mais de um ano e meio, mas, uma vez mais, a APELA tem um sistema de empréstimo de equipamentos, como é o caso do sistema de comunicação por controlo ocular que estou a alugar de momento, enquanto o meu não chega.
Costumo brincar com elas e dizer que me deviam pagar pela formação contínua que estão a ter comigo, pois ficam com um “know-how” muito mais específico para futuros casos que esperemos não apareçam.

Na nossa pacatez arquipelágica temos tendência a pensar que há certas situações que não acontecem perto de nós. Sente também isso em relação a esta doença?

Sim, como não conhecemos casos concretos perto de nós, não nos passa pela cabeça que nos possam acontecer. E como a ELA há toda uma série de doenças raras que nos chegam ao conhecimento através dos media. Devíamos todos tirar um tempinho no meio do rebuliço das nossas vidas e refletir: “E se fosse comigo?”. Falta na nossa sociedade pormo-nos no lugar dos outros, para aprender a perceber, a respeitar e a tolerar. Tenho encontrado pessoas que não têm sensibilidade para lidar com a minha condição, e apercebo-me que muitos pais não educam as crianças para respeitar e aceitar a diferença.

A Nívia é uma guerreira, com muita vontade de viver. Quais são os seus objetivos?

Gostava de conseguir controlar mais as minhas emoções para ser uma verdadeira guerreira. Tinha alguns objetivos, a nível pessoal e também profissional, que sei que não vou concretizar, por isso vou-me focar nos objetivos viáveis, que passam por acompanhar o meu filho na escola, pois entra agora para o primeiro ano, apoiar o meu companheiro ou pelo menos facilitar-lhe a vida, passar algum tempo de qualidade com aqueles amigos e familiares que sei que me apoiam, ajudar amigos que precisam pois sou boa ouvinte e conselheira (já tenho alguns “clientes”), realizar pequenos sonhos e tentar ser feliz a cada dia, da maneira que posso.
Outras coisas virão, o corpo está preso mas o cérebro continua a mil à hora. Sobretudo, o que quero é que o meu filho seja muito feliz e não fique privado de nada só porque a mãe está doente. E retribuir em dobro a quem me tem apoiado, anjos que aparecem nos momentos difíceis da nossa vida.

Incomoda-a o olhar das pessoas? O que gostaria que lhe dissessem/fizessem quando a veem?

Sim, mas já incomodou mais. As pessoas vão-se habituando, mas as que não me viam há algum tempo e têm algum apreço por mim e agora me veem em cadeira de rodas ou alguém a dar-me comida, ou simplesmente o meu aspeto - pois emagreci muito e o meu corpo mudou -, olham-me com olhar triste e dizem as expressões comuns “paciência nossa Nívia”, “a vida é mesmo assim”, “és uma rapariga tão nova”, “tens de ter muita força” e por aí fora. Outros querem dar abraços e beijos e normalmente emociono-me. E há ainda outras pessoas que, quando se apercebem que não consigo falar, começam a gesticular e a falar mais alto como se fosse surda. Outras falam de mim e pensam que não estou a ouvir. Até já chegaram a perguntar a quem estava comigo se eu estava “discretinha”. As minhas capacidades intelectuais estão intactas, por isso há situações que só me dão é para rir.

Qual a sua principal preocupação?

A minha maior preocupação é que o meu filho perca a mãe precocemente. Tenho pena de não poder ajudar os meus pais que também precisam de apoio. Também me preocupa chegar a um ponto em que seja difícil demais cuidarem de mim. E claro que me preocupa igualmente o sofrimento que possa vir a passar.

A ELA fê-la mudar o seu olhar sobre a sua vida?

A ELA fez-me parar (literalmente) e pensar que damos muito de nós no trabalho e aos outros sem reconhecimento algum, muitas vezes privando a nossa família mais próxima de tempo de qualidade. Faz-me ver que as pessoas se preocupam em demasia com coisas fúteis e com a opinião dos outros. O mais importante é trabalhar para viver e não o contrário, é desfrutar de pequenos momentos todos os dias que nos deem paz e alegria, é amar de verdade o que de bom a vida nos dá.

Que conselhos deixa a quem ler esta entrevista?

Que acordem todos os dias com o mesmo objetivo: tentar conquistar o mundo. Não deixem para amanhã o que podem fazer hoje pois amanhã pode ser tarde demais. Abracem. Beijem. Amem. Sejam gratos. Retribuam em dobro. Ouçam o vosso corpo. E acreditem, a saúde é o maior tesouro que podem ter!












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