Açoriano Oriental
De romarias mistas e de todo o ano a romarias quaresmais

Tradição secular das Romarias de São Miguel foi mudando com a passagem do tempo: chegaram a integrar mulheres e crianças, a realizarem-se no verão e a terem um caráter lúdico e festivo. Primeiras referências a romarias na ilha remontam ao século XVI, mas com as características semelhantes às atuais só há relatos de fontes históricas a partir do século XVII


Autor: Paula Gouveia

As Romarias de São Miguel não se mantiveram imutáveis ao longo dos séculos. Hoje, são realizadas na quaresma e integradas apenas por homens e rapazes, num ambiente de penitência, mas nem sempre foi assim.

“Trata-se de uma tradição secular que evoluiu ao longo dos séculos”, afirma a investigadora Carmen Ponte, a residir e a lecionar em França, e responsável pelo processo de candidatura das romarias a património cultural imaterial da humanidade, promovido pelo Movimento de Romeiros de São Miguel.

Segundo a autora da tese “Romeiros de São Miguel. Entre tradição e inovação”, ao longo do tempo “certas características acabaram por desaparecer e outras foram-se modificando, como por exemplo o período de realização das mesmas, o facto de ter evoluído para uma romaria feita exclusivamente pelo sexo masculino, a introdução de um regulamento que uniformizou certos aspetos, e o aparecimento de novas figuras principais do rancho, como os ajudantes”, revela.

Contudo, ressalva Carmen Ponte, “o que é certo é que, de toda a investigação que pude fazer, não há dúvida nenhuma de que as romarias resultam de dois elementos fundadores: as catástrofes naturais e as visitas às casinhas de Nossa Senhora. Estas são duas componentes que sempre apareceram nos vários documentos que pude investigar”, sublinha.

No seu trabalho de investigação sobre as romarias, conseguiu traçar as grandes linhas da história das romarias. Deste modo, numa altura em que se estão a assinalar os 500 anos das Romarias, Carmen Ponte diz que “é verdade que, segundo a tradição oral, estas romarias tiveram a sua origem nos terramotos e nas erupções vulcânicas do século XVI”, e, de facto, “os textos do século XVI dos nossos cronistas como Gaspar Frutuoso e Frei Diogo de Chagas, ao descreverem estas calamidades, mencionam a realização de procissões e de romarias, para designar estes atos espontâneos, e até falam de romarias a uma ermida ou outra de invocação feminina”, mas “é evidente que os textos do século XVI não nos dão elementos suficientes para falarmos de romarias à volta da ilha como atualmente elas são feitas”.

Como explica Carmen Ponte, “sempre foi dito por vários autores, nomeadamente no século XX, que as romarias tiveram origem no século XVI, em 1522, mas não há muita documentação que prove esta tese. Portanto, baseia-se na tradição oral. O que é certo é que é a partir do século XVII que ela se aproxima muito mais das atuais romarias quaresmais”.

“Os textos do próprio cronista Gaspar Frutuoso são muito ambíguos. A catástrofe de 1522 foi algo de muito importante porque foi feito um romance, que Gaspar Frutuoso transcreve na sua obra, sobre esta calamidade. E ele fala de procissões e de romarias. E em 1622, foi feito o centenário sobre esta calamidade, em que é feita uma procissão, uma romaria, mas não é especificado se é à volta da ilha”.

Assim, adianta a investigadora: “o que é certo é que é sobretudo no século XVII que são salientadas várias características que se aproximam das atuais romarias quaresmais” e aparecem devido a essa grande erupção vulcânica de 1630 nas Furnas. “Sobre esta calamidade, o Frei Agostinho de Mont’Alverne, na sua obra ‘Crónicas da Província de São João Evangelista dos Açores’, ao relatar a vida dos eremitas do convento de Vale de Cabaços de Água de Pau, faz referência às romarias feitas pelos habitantes da ilha, e ele cita uma penitência dos micaelenses que visitam a pé e descalços, de dia e de noite, as casas de Nossa Senhora existentes na ilha. E salienta que o total de ermidas visitadas eram 61, o que nos leva a crer que havia um número significativo de ermidas visitadas”.

A investigadora encontrou ainda “uma referência a um manuscrito escrito por padre António de Assunção (documento que está desaparecido), e que se intitula ‘Peregrinação que costumam fazer os moradores desta ilha de São Miguel, visitando as igrejas de Nossa Senhora’, e esse título evidencia a existência destas romarias durante o século XVII”.

Para além disso, existe “um manuscrito redigido pelo padre Manuel da Purificação que era o ministro desta congregação eremítica, que descreve, em 1665, de forma muito sucinta, as romarias feitas pelos micaelenses - e descobri que na margem esquerda desta página há uma nota que se refere às origens da devoção que têm os moradores desta ilha em visitarem as casas de Nossa Senhora. Neste texto, ele apresenta algumas características inerentes a estas romarias e adianta que o objetivo consistia em correr os templos marianos existentes na ilha”. Como salienta a investigadora, através deste documento “verificámos que já há as visitas às casas de Nossa Senhora, num percurso à volta da ilha. E se em 1635 o número de ermidas visitadas era 61, em 1650 os romeiros visitavam entre 60 e 70 templos de invocação feminina”, refere.

Carmen Ponte explica que “os manuscritos do século XVIII fazem alusão às romarias, o que nos leva a crer que eram já uma prática comum. Mas, nesta época, tanto homens como mulheres e crianças participavam nestas romarias, portanto, eram romarias mistas”, referindo-se que “os romeiros percorriam a ilha, a pé e descalços e num percurso que durava vários dias, e era feito de dia e de noite”; bem como que “eram realizadas todo o ano, mas era sobretudo no verão, daí que havia um número significativo de romeiros”.

“Através do estudo de várias visitas pastorais, concluí que, no século XVIII, elas continuam a existir, mas, até meados desse século, vão aparecer com caráter lúdico, e é a razão, pela qual, o prelado diocesano vai proibir a participação feminina e até as próprias romarias – havia bailes, cânticos, e uso de instrumentos de música. No entanto, a ação repressiva da Igreja não impediu a continuação desta manifestação. No fundo, o caráter lúdico acabou por desaparecer e elas passaram a ser realizadas durante a quaresma, ligadas à penitência”.

No século XIX, explica a investigadora, “autores confirmam que estas romarias constituíam uma prática enraizada no sistema cultural e religioso, e relatam mesmo que a penitência mais comum consistia em percorrer a ilha descalço, rezando em todas as igrejas e capelas, e diante de todas as imagens e cruzes”.

“No século XX, outros autores afirmam também que subsistia o costume das romarias quaresmais, e pelo sexo masculino. E, com a repressão da autoridade eclesiástica, a romaria torna-se numa manifestação autónoma, saindo das freguesias. Não havia ranchos de romeiros que saíssem das cidades”. E, “durante o século XX, continuaram a ser alvo de críticas e de proibições, mas continuaram a ser realizadas”. “Eu consegui encontrar e analisar o livro de registo de licenças para atos religiosos do Governo Civil de Ponta Delgada, e aí encontrei várias licenças e autorizações concedidas a romeiros de São Miguel, porque nesta altura todo o pedido para um ato religioso deveria ter uma autorização ou licença. E notámos que nesta época a romaria quaresmal não era reconhecida e oficializada pela Igreja – era considerada como uma prática autónoma marginal e realizada fora do contexto religioso e institucional. Isso vê-se perfeitamente no livro de registo das licenças, porque os próprios pedidos de autorização eram feitos pelos mestres dos romeiros e não pelos párocos”.

Seguiu-se depois, “um certo declínio das romarias, devido à imagem de parente pobre da Cultura que se foi instalando em setores da sociedade micaelense, mas a imprensa local e os intelectuais e artistas açorianos vão contribuir para a divulgação e valorização e permanência desta tradição, e depois também o reconhecimento oficial desta manifestação pela Diocese de Angra, através da publicação do regulamento dos romeiros em 1962, e que vai permitir apagar esta imagem negativa que ela tinha adquirido”.

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