Açoriano Oriental
Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial edita livro

Houve uma guerra em África. E os ex-combatentes do Faial estiveram lá. No fio da navalha. Na linha de tiro. Caminhando sobre o abismo. Mas também e indiretamente, lá estiveram as suas mães e pais, as suas noivas, esposas e madrinhas de guerra que, por via dos aerogramas e da saudade, sofreram, à distância, a Guerra Colonial.


Autor: Victor Rui Dores

Mas de que falamos nós quando falamos em Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar?

Falamos de um conflito armado que durou de 1961 a 1974 e que constituiu uma das mais trágicas encruzilhadas da História portuguesa. Falamos de uma ferida que, meio século depois, ainda não cicatrizou na memória dos que a viveram. Não foi só o caudal de mortos, feridos, estropiados e desaparecidos que essa guerra provocou em Angola, Guiné e Moçambique. Foi também a memória de um tempo em que o medo, a crueldade e a intolerância foram postos ao serviço dos mecanismos repressivos do Estado Novo, numa altura em que Portugal, “país uno e indivisível”, vivia, entre parêntesis e a preto e branco, no seu ruralismo agrário, no seu conservadorismo bacoco e no seu analfabetismo envergonhado.

Falo com um desses ex-combatentes, Raul Dutra, faialense, 74 anos, que recorda os dias incertos da guerra: os ataques, as flagelações, as emboscadas e contra-emboscadas, o sopro dos rebentamentos, o disparo dos morteiros, as rajadas de G-3, o perigo das minas anti-pessoal, os roncos de “unimogs” e “berliets”, a marcha lenta, a farda ensopada, as ordens insensatas, as missões absurdas, as picadas da incerteza, a solidão do capim, a angústia do cachimbo, o medo, o isolamento, o pânico, a distância, a ausência dos familiares e amigos, as noites de insónia, os temores, as alucinações, a memória de ver matar e morrer…

Raul lutou pela sua sobrevivência, tal como os guerrilheiros inimigos combateram pela sua liberdade. Servindo de “carne para canhão”, aprendeu, na guerra, a amar melhor a paz e a celebrar a amizade fraternal. Vendo a morte a rondar por perto, conheceu o valor excecional de viver.

A denominada “Síndrome do Stress Pós-Traumático da Guerra” não é uma figura de retórica – é uma enfermidade que ainda hoje atinge milhares de ex-combatentes (há estudos que apontam para cerca de 140.000), com reflexos diretos nas suas famílias, e, na ótica de alguns psiquiatras, trata-se mesmo de um problema de saúde pública.

Os que ontem eram jovens na flor da idade (entre os 20 e 24 anos) vivem hoje o trauma e o recalcamento dessa guerra escusada, estúpida e inglória, como são, de resto, todas as guerras.

Para preservar a memória, resolveu a Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial editar o livro 'Que seria de nós se não tivéssemos memória?' (Dezembro, 2018), com texto e organização de Jorge Vieira, arquivo e organização de Raul Dutra, colaboração de José Alemão e Hélio Pombo.

A publicação dá conta de todo o historial da associação, fundada no dia 10 de maio de 2004, com minuciosas informações sobre os seus estatutos e associados, suas direções e comissões, seus órgãos sociais, delegados das freguesias, diretores responsáveis por freguesias, sócios no ativo, sócios inativos e sócios honorários.

Ilustrado com uma série de fotos que dão contexto, forma e verdade, o livro inclui ainda depoimentos do general Silva Cardoso, do coronel Carlos Matos Gomes e do jornalista-escritor João Paulo Guerra, bem como a letra e a partitura do “Hino da Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial”, com música de Amorim de Carvalho e letra de Victor Rui Dores.

A memória é um músculo e ninguém vive sem memória. Os ex-combatentes da ilha do Faial não têm, felizmente, falta de memória e, por isso mesmo, não esquecem os 12 camaradas faialenses que, “em defesa da pátria”, tombaram para sempre em terras africanas, conforme podemos hoje ver no memorial, sito à Avenida 25 de Abril, na Horta.

Isto significa que eles já não combatem mas ainda lutam. Lutam contra o esquecimento. Lutam contra a incompreensão dos sucessivos governos deste país que tão mal os têm tratado... Hoje, mais vividos e menos jovens, eles teimam em preservar a memória, através de artigos de imprensa, publicações, e encontros anuais.

Que seria de nós se não tivéssemos memória? Eis a pergunta que fica no ar.

O livro vem precisamente lembrar-nos aquilo que não podemos esquecer. E não esqueço a quadra de António Aleixo: “À guerra não ligues meia/ Porque os grandes cá da terra/ Tendo a guerra em terra alheia/ Não querem que acabe a guerra”.


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