Autor: Lusa/AO Online
A justificação que a Rússia dá relativamente à invasão da Ucrânia a 24 de fevereiro de 2021 “pode ser profundamente desestabilizadora”, sublinhou Joseph Siegle, diretor do Africa Center for Strategic Studies (ACSS), um instituto de análise em Washington financiado pelo Congresso norte-americano, que interroga: “Porque é que a Nigéria não haveria de engolir alguns países vizinhos? Porque é que o Sudão não haveria de expandir as suas fronteiras?"
“O que acontecer na Ucrânia terá implicações profundas na influência russa em África e em todo o mundo. Além das questões territoriais entre a Ucrânia e a Rússia, Moscovo está a desafiar a ordem mundial e as convenções internacionais. Se tiverem sucesso, isso abrir-lhes-á as portas para fazerem o mesmo noutro local, assim como deixará o caminho aberto a outros países para seguirem este exemplo”, reforçou o investigador.
Segundo o diretor do ACSS, a Rússia está empenhada em introduzir perturbações, “garantindo os seus interesses, mas também está a tentar passar uma ameaça aos interesses ocidentais”.
Como exemplos, Siegle aponta a tentativa de Moscovo “cimentar uma presença na região do Norte de África, incluindo a instalação de uma base naval na Líbia”, intenção noticiada reiteradamente há, pelo menos, uma década e meia, mas a que o Ocidente nunca deixou de dar crédito.
Uma base naval na Líbia – e outra no Sudão, também noticiada várias vezes há anos, pelo menos desde a deposição em 2019 do ex-ditador Omar al-Bashir, por um golpe militar apoiado por Moscovo – “colocaria a Rússia em posição de perturbar o tráfego marítimo mundial através do Canal do Suez”, pelo qual passa anualmente 12% do comércio mundial e 90% do petróleo que abastece a América do Norte e o Sudeste Asiático, sublinhou Joseph Siegle.
Mais concreta e com desenvolvimentos significativos no último ano, é a instabilidade criada no Sahel, que, na perspetiva do mesmo investigador, “representa uma perturbação significativa para a Europa devido às migrações” – questão igualmente central na disputa de influências entre a Rússia e o Ocidente na Líbia - e “à atividade de grupos extremistas islâmicos violentos”.
“Há vários líderes golpistas africanos que têm recebido o apoio da Rússia”, nomeadamente no Mali e no Burkina Faso, além do Sudão, sendo que "Moscovo tem conseguido reforçar a sua influência efetiva em África no último ano através de meios não-convencionais”, aponta Siegle.
“Estão a fazê-lo através de meios que chamo assimétricos, promovendo ou protegendo líderes africanos autoritários. A Rússia oferece-lhes proteção, patrocinando-os politicamente nas Nações Unidas, ao mesmo tempo que está a deslocar forças [paramilitares privadas] do Grupo Wagner para vários destes países”, acrescentou.
Paul Nantulya, também investigador no ACSS, coloca em perspetiva a presença do Grupo Wagner em países como a República Centro-Africana, Mali, Burkina Faso, Líbia e outros não confirmados, como a República Democrática do Congo e o Sudão, considerando-a uma ameaça à “arquitetura de segurança africana de paz e segurança”.
“Pode provocar-se uma mudança estrutural num sistema internacional, ou num subsistema, através da violência, e é isto que o Grupo Wagner está a fazer no Sahel”, alertou Nantulya.
Dois países nesta região, Mali e Burkina Faso, foram notícia no último ano por expulsarem dos seus territórios as forças francesas integradas na Operação Barkhane, no primeiro caso, e na Operação Sabre - a bandeira francesa foi arreada este domingo no Campo Bila Zagré, em Kamboincin, nos arredores de Ouagadougou - no segundo, ao mesmo tempo que abriram as fronteiras à presença do Grupo Wagner e estão a lançar acordos de cooperação militar com Moscovo.
O Mali tem igualmente sido notícia recorrente por dificultar a atuação e reduzir a margem de manobra da missão das Nações Unidas no país, a MINUSMA. Já o Burkina Faso, expulsou em dezembro a coordenadora da ONU no país, a diplomata italiana Barbara Manzi, que classificou como “persona non grata”.
“Esta é uma região fortemente desestabilizada pelo extremismo islâmico, combatido desde há quase uma década não apenas por atores franceses e outros, nomeadamente africanos, como é exemplo a força conjunta do G5 Sahel” – financiada pela União Europeia e inicialmente formada pela Mauritânia, Chade, Burkina Faso, Níger e até maio pelo Mali, que a abandonou também – e cuja estrutura foi destruída no último ano, por influência direta do Grupo Wagner e indireta da Rússia, disse Paul Nantulya.
Para o investigador, “é importante sublinhar que o Grupo Wagner está a ameaçar perigosamente a arquitetura africana de paz e segurança da União Africana (UA) e das Nações Unidas”.
“Os estados de África beneficiam de uma arquitetura de paz e segurança no quadro da UA, que lhes permite enfrentar a instabilidade dentro das suas fronteiras, uma vez seguidos certos procedimentos para obterem assistência e solicitando o destacamento de uma força”.
Segundo Nantulya, “os países africanos levaram 25 anos a construir a arquitetura africana de paz e de segurança, que ainda é fraca, mas está a desenvolver-se, e o Grupo Wagner está a destruí-la”.