Açoriano Oriental
Um ano após o ‘Lorenzo’ passar, ainda há marcas por sarar

Foi na madrugada de 1 para 2 de outubro de 2019 que o furacão de categoria 2 passou pelo arquipélago dos Açores, destruindo o porto comercial das Lajes das Flores e desalojando 53 pessoas em três ilhas

Um ano após o ‘Lorenzo’ passar, ainda há marcas por sarar

Autor: Nuno Martins Neves

Da esplanada do bar Trancador, o porto das Lajes das Flores toma toda a vista. Situado defronte e em posição sobranceira, foi a partir dali que o proprietário do bar, o graciosense Júlio Espinola, assistiu, em primeira mão, a devastadora passagem do furacão Lorenzo pela ilha, na madrugada de 2 de outubro de 2019. Um ano depois, ainda lhe custa recordar a fatídica noite quando o porto comercial foi arrasado pelos ventos fortes e ondas gigantes.

Habituados ao mau tempo, contou com um grupo de amigos para passar lá a noite: “Tínhamos boas lanternas mas com a ressalga puxada pelo vento, pouco se via e a partir das 3 da manhã faltou de vez a luz e pouco depois todas as comunicações”, recorda.

O cheiro a combustível foi o primeiro indicador que a tempestade era grave. “Na altura, não associamos ao início da destruição da doca”, diz. Por esta altura, já parte do porto se encontrava destruído: com visibilidade muito reduzida, o barulho das ondas a bater na estrutura portuária era “ensurdecedor”.

“Em menos de meia hora e uma dúzia de ondas gigantes, quase tudo desapareceu”, conta. As fotografias, tiradas já de dia, “não faz jus ao poder do mar”. O pior, diz Júlio Espinhola, “foi ver as pessoas a chegar e ver as caras deles. Gente da terra. Gente que apanhou com aquela visão de repente, do nada”.

O sexto furacão a passar pelos Açores nos últimos 15 anos deixou um rasto de destruição material mas, felizmente, não reclamou nenhuma vida. No porto comercial das Lajes, principal ponto de entrada do Grupo Ocidental, o último ano foi de constante superação, antes mesmo da pandemia que virou o mundo ao avesso.

O cais -5, o único que permaneceu utilizável, foi a boia de salvação para as populações, permitindo superar a crise energética declarada pelo Governo Regional nos primeiros meses. Obras de remoção e dragagem permitiram que o cais receba atualmente navios com um máximo de 90 metros e calado de 5 metros.

Piloto da Portos dos Açores, o florentino Filipe Gomes conhece o fundo do mar como poucos. Superada a desolação de ver o seu porto das Lajes destruído, o sentimento agora é de desafio. A tarefa do piloto - assegurar que a aproximação, manobra de atracar e largada do navio decorra em segurança - já não era fácil, ficou ainda mais complicada e desafiante. “As condições do porto estavam completamente diferente, o cais -5 não tem a melhor orientação aos ventos predominantes e principalmente porque o cais tem apenas 65 metros de comprimento com cerca de 100 metros de zona disponível para atracar”, explica. O Malena, o navio fretado pelo Governo dos Açores para suprir o abastecimento, tem 90 metros de comprimento, pelo que “fica muito pouco espaço de manobra, sendo imperial que a manobra ocorra de uma forma praticamente perfeita”, acrescenta.

A esperança no novo porto são as melhores, acredita: “Penso que vamos ter um porto capaz de superar grandes tempestades e que vai ser bastante mais funcional, pensado para o futuro e para as reais necessidades da ilha”.

Filipe Gomes tem ainda outra recordação, mais amarga, do furacão: proprietário da primeira lavandaria self-service dos Açores, instalada no porto das Lajes, foi totalmente destruída pela passagem do Lorenzo. Um prejuízo não assumido pela seguradora, por não cobrir danos provocados pela ação da água...salgada. “Ficamos incrédulos.

Espanta-nos que a morada que está no seguro seja a do porto e nunca nos tenha sido dito, nestes anos todos, que danos causados pela água do mar não eram cobertos...”.

Transporte de animais vivos ainda preocupa
Durante os primeiros três meses do pós-furacão, os agricultores das Flores viveram com o coração nas mãos: o barco que fazia o abastecimento da ilha não trazia ração suficiente para alimentar o gado, nem havia forma de exportar os animais vivos. E as pastagens foram todas destruídas pelos ventos e pela salmoura.

Válter Câmara, presidente da Cooperativa Agrícola das Flores, fala de tempos “muito complicados” que a compensação de 90 cêntimos por cada dia que o gado não saiu da ilha atenuou. Melhorias só com a chegada do navio Malena. “Em duas viagens ficou regularizado a parte da importação, mas a exportação , como só tem capacidade para levar 9 contentores de animais vivos (cerca de 135 animais), foram precisas mais algumas viagens”.

Com o aproximar do inverno, os agricultores já fizeram chegar a preocupação da necessidade de mais viagens, além das programadas de 15 em 15 dias. “Para escoarmos o gado vivo até ao início de dezembro, vão ser precisas mais. Falamos com as secretarias regionais e já temos a garantia do governo que, caso seja necessário, serão feitas”.

Região diz que República tem cumprido apoios e aguarda fundos comunitários
O Governo dos Açores diz que a República tem cumprido os apoios financeiros, à medida que a recuperação avança, aguardando-se agora 198 milhões de euros do próximo quadro comunitário.

Para fazer face aos estragos, o Governo Regional decretou, a 17 de outubro, a situação de calamidade pública nos Açores, uma medida aprovada pelo Governo da República a 7 de novembro, “para efeito da reposição da normalidade nesta área geográfica”, lia-se em comunicado de Conselho de Ministros. O Governo da República comprometeu-se a pagar 85% dos estragos causados pela intempérie, bem como a agilizar os procedimentos de recuperação das infraestruturas, nomeadamente permitindo ajustes diretos na contratação pública. Assim, o Governo central assumiu o ónus de cerca de 270 milhões de euros.

Do dinheiro avançado pela República, 198 milhões de euros provêm do Instrumento de Recuperação e Resiliência, “mas são completamente fora da definição de valor para os Açores do Plano de Recuperação Europeu”, frisou o vice-presidente do Governo Regional, Sérgio Ávila.

Os fundos comunitários devem ser executados a partir de 2021, mas os apoios do Governo central plasmados no Orçamento do Estado “têm sido cumpridos rigorosamente”, explicou o governante à Lusa.

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