Açoriano Oriental
“Fazer cinema implica paciência, resiliência e acreditar nos projetos”

Gonçalo Tocha.  Nascido em Lisboa, mas com profundas raízes familiares nos Açores, encontrou no arquipélago o espaço ideal para criar. Inspirando-se na cultura e nas histórias que fazem parte da sua herança, construiu uma carreira marcada por uma abordagem ao cinema íntima e de autor


“Fazer cinema implica paciência, resiliência  e acreditar nos projetos”

Autor: Ana Carvalho Melo

Gonçalo Tocha, realizador, nasceu em Lisboa, mas as suas raízes familiares ligam-no profundamente aos Açores. Neto de micaelenses, passou a infância dividido entre o ambiente urbano de Lisboa e as paisagens açorianas de São Miguel, onde passava as férias de verão com a família. Essas viagens anuais não só permitiam que Gonçalo Tocha se conectasse com as suas origens, mas também plantaram as sementes para a sua futura carreira artística.

“As férias de verão eram todas passadas nos Açores, onde reencontrávamos a família e onde passávamos os melhores momentos da nossa vida”, recorda.

Ao longo do seu percurso pessoal, a música e a escrita estiveram sempre presentes, tendo o cinema apenas surgido já enquanto frequentava o ensino superior.

“O cinema é quase a etapa final no meu percurso. Houve muito tempo até chegar à Universidade em que queria fazer muita coisa, e por pressão familiar acabei por concorrer à Faculdade de Letras em Lisboa, porque o cinema era uma paixão muito secreta e que estava a maturar, que ainda não era tão evidente como escrever”, revela.

Durante o tempo na universidade, criou o NuCiVo (Núcleo de Cinema e Vídeo), um cineclube que se tornou central na sua formação, permitindo-lhe mergulhar no mundo do cinema de forma autodidata e apaixonada. Além do seu envolvimento no NuCiVo, Gonçalo Tocha também explorou as suas paixões pela música e literatura, chegando a participar numa banda.

“Na Universidade comecei a ver vários tipos de pessoas com vários gostos dentro do cinema, da música e da literatura. E havia vários núcleos culturais que foram quase como um segundo curso, com a fundação do cineclube”, contou, salientando que o NuCiVo fez este ano 25 anos.
No final do curso, ainda deu aulas de português a estrangeiros, mas o momento decisivo da sua carreira ocorreu em 2005, após a morte da sua mãe.

“Com a morte da minha mãe houve uma rutura, em que pus tudo em questão e em que precisava de ter uma expressão pessoal. A música, nesse momento, já não estava na minha vida, podia ter escrito muito, mas havia uma arte nova que tinha assimilado”, recorda, contando que, decidido a transformar essa experiência em arte, viajou para São Miguel, munido de uma câmara emprestada, para filmar o que viria a ser a sua primeira longa-metragem, “Balaou” (2007).

O filme, uma homenagem à sua mãe, não só marcou a sua estreia como realizador, como também foi um sucesso, recebendo os prémios de Melhor Filme Português e Melhor Fotografia no Indielisboa 2007, e sendo exibido na RTP2 e no canal franco-alemão ARTE.

“É a partir daqui que eu entro no meio do cinema”, realça.

Após o sucesso de “Balaou”, Gonçalo Tocha continuou a explorar as suas raízes açorianas com o filme “É na Terra, não é na Lua” (2011), inteiramente filmado na Ilha do Corvo. O filme estreou mundialmente no prestigiado Festival de Locarno, onde recebeu uma menção especial do júri, além de ganhar mais quatro primeiros prémios em festivais internacionais. Esta obra consolidou Gonçalo Tocha como um realizador conhecido pela sua abordagem íntima e autoral do documentário.

Nos anos seguintes, Gonçalo foi convidado a realizar mais filmes, como “Torres & Cometas” (2013), para a Capital Europeia da Cultura em Guimarães, e “A Mãe e o Mar” (2013), sobre as mulheres pescadeiras de Vila Chã, que estreou no Festival de Vila do Conde.

Procurando maior liberdade criativa e um regresso às suas raízes, Gonçalo Tocha decidiu estabelecer-se no Capelo, no Faial, em 2017, onde fundou a produtora Barca 13 - Insulares Filmes e iniciou dois grandes projetos cinematográficos. Um deles, “Mistérios”, é um documentário focado no Triângulo Pico, São Jorge e Faial, explorando cinco anos de vida nesse microcosmo do arquipélago.

O outro projeto, filmado na Graciosa, aborda questões agrárias e também está previsto para ser lançado em 2025.

“Ao produzir nos Açores temos a grande vantagem de estar no local em permanência e temos uma comunidade muito unida e que se mobiliza perante projetos. Essa é a grande vantagem de produzir nos Açores. Mas falta uma política verdadeira de apoio à cultura e às artes, dado que os trabalhos vão dar uma grande força cultural ao arquipélago e vão fornecer o substrato, documentos e obras que podem ser históricas e que darão uma grande força à comunidade. Isso é o que acontece noutros sítios onde há política cultural”, afirma.

Com quase duas décadas ligadas ao cinema, Gonçalo Tocha afirma que o cinema em Portugal, apesar de “muito cotado internacionalmente, porque tem muita liberdade de criação e há muitos realizadores a fazer filmes muito próprios e únicos, que fazem do cinema uma expressão artística”, está limitado pelo mercado nacional, que é pequeno. “Desde 2000 para cá aumentou muito o número de realizadores e produtoras, o que é positivo porque há mais variedade. Ao mesmo tempo, os apoios aumentaram um pouco, ainda que não em proporção, e os canais de distribuição estão limitados, o que nos leva a virar mais para o mercado externo.”

Lembra ainda que fazer cinema é demorado, o que implica “paciência, resiliência e acreditar nos projetos”, sendo por vezes “complexo gerir as expectativas.”

Quanto aos Açores em particular, refere que se trata de uma realidade distinta, onde “não há grande tradição de produtoras, os realizadores estão muito afastados dos meios de decisão e o mercado é ainda mais reduzido.”

No entanto, realçou que eventos como o Festival Internacional do Filme Insular, na ilha de Groix, em França, onde o arquipélago dos Açores esteve em destaque, são oportunidades únicas para se refletir sobre o futuro do cinema, salientando que a opinião geral é que quanto maior for a visibilidade dada ao cinema feito nos Açores, mais se contribui para que esta realidade se altere.

Além dos projetos cinematográficos, Gonçalo Tocha e a mulher, Sophie Barbara, transformaram a antiga casa da Missão Científica do Vulcão dos Capelinhos num espaço de residência artística, AVISTAVULCÃO: A Casa da Missão, acolhendo artistas internacionais e promovendo atividades culturais na comunidade local.

“Este projeto que temos desde 2021 é, ao mesmo tempo, uma associação que faz atividades culturais para a comunidade. Quisemos transformar uma casa de acolhimento científico numa casa de acolhimento artístico dentro do espaço insular. Ao longo do ano, cada artista faz o seu trabalho e, ao mesmo tempo, há uma programação para a comunidade”, descreve.

Gonçalo Tocha, agora radicado nos Açores, encontra nas ilhas o espaço ideal para criar, inspirando-se na rica cultura e nas histórias que fazem parte da sua herança familiar.

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