Há uma estranha mas reconfortante energia na sala onde estão 11 pessoas ligadas por uma maldita palavra. Os sorrisos que trocam escondem as batalhas que já travaram, nas curtas e longas vidas que já levam. Ali, onde as lágrimas não entram, o primeiro grupo do inovador projeto Exercício Físico em Doentes Oncológicos procura recuperar a mobilidade que o cancro levou.
“Vão sentir limitações, mas daqui a 3 meses vão pedir por mais”, grita o instrutor Pedro de Medeiros enquanto vai pedindo que cada um dos elementos faça o máximo que puder do exercício físico. Neste caso, flexões: “Fiz 15. Mas não sei se aldrabei”, diz Maria Eduarda, arrancando sorrisos aos restantes.
A sala no SP Fitness Boutique - ginásio em Ponta Delgada que abraçou o projeto e que não cobra a nenhum dos praticantes do grupo, bem como ao instrutor, que aceitou participar pro bono - inundou-se de risos e sorrisos. Porque é tão importante recuperar a mobilidade dos membros, como recuperar o bem-estar psicológico. E nisso, o “vendedor de profissão, fotógrafo por paixão” de 53 anos é exímio.
Há três anos, a vida de Osvaldo Janeiro deu uma pirueta: “Acordei de noite sem poder respirar pelo nariz nem pela boca, aos tombos até a casa de banho. Meti a cabeça debaixo de água fria e no outro dia, logo de manhã, fui ao médico”. Visto pela doutora Sofia Decq Mota, que lhe perguntou sobre o “ovo que tinha no pescoço há mais de um ano”. O resultado das análises confirmaram ter cancro na nasofaringe. “Está por detrás do nariz e não dá para operar. Eu tento sempre levar na brincadeira e disse ao médico se um CRF num copo aquecido não curava (risos). A médica mandou-me continuar com a boa disposição, que ia precisar dela, pois ia piorar antes de melhorar!”
Osvaldo Janeiro luta “com aquilo que posso” para ultrapassar o cancro e das aulas de exercício físico espera recuperar o que a doença lhe tirou, a fototerapia, como chama. “Eu trabalho na Casa Batista desde os meus 14 anos. Sempre fiz fotografia, mas mais em batizados, casamentos, coisas familiares. Com a era digital nasceu a paixão que me levou sempre a sair de casa e a fazer aquilo que eu descobri que gostava: trilhos, caminhadas pela natureza e fotografia. É isto que quero recuperar”.
“Já me tinha esquecido disto, sabe?”, conta resignada Filomena Soares, voluntária na Liga Portuguesa Contra o Cancro. Aos 66 anos, esta micaelense nascida no Porto Formoso, mas que veio para a cidade há seis décadas, já travou mais batalhas do que seria de esperar. Há 24 anos, um cancro de mama levou-a a fazer uma mastectomia radical. Há quatro, num exame de rotina, apareceram metástases nos pulmões e no final da coluna. “Uma pessoa olha-se ao espelho e vê que está mutilada, que falta qualquer coisa. Tiraram-me os gânglios linfáticos e também fiquei incapacitada do braço bastante tempo”. Mas a doença não a parou: cinco meses em casa e regressou ao trabalho num laboratório de uma fábrica de leite.
“Quando recebemos a notícia que temos cancro, é uma bomba que dá para pensar tudo e mais alguma coisa. E a primeira é: vou morrer. Na altura, já era viúva mas tinha uma filha com 18 ano e só pensava: vou deixar a minha filha”. Não deixou: a fé e a resiliência levaram-na a ter uma vida normal, tão normal que até brincava com a doença. “Há um perneta, há um maneta e nós somos as mametas “, disse, entre risos.
Agora, por entre flexões, saltos e outros exercícios, a “mais jovem voluntária da Liga”, como é conhecida, quer recuperar a vida que perdeu. “Andar mais, caminhar mais, sem me cansar tanto. Depois desta crise dos pulmões, custa-me mais e, por isso, estou nestas aulas para conseguir recuperar a minha qualidade de vida. E depois ajudar mais alguém que precise e acompanhar a minha filha o mais que eu puder, que agora tem 43 anos e vê na mãe uma guerreira”.
Estas palavras ecoam em Ana Borges, que bebe atentamente cada palavra que Filomena Soares diz. Natural de Água de Pau, a comerciante de 49 anos partilha das mesmas dores, pois também ela teve de retirar o peito. Um retrato dos últimos três anos onde o apoio “da família, amigos e patrões” foi vital para se segurar.
“Sabe o que é passar a época natalícia sem saber resultados da biopsia? Se era bom, se era ruim? Só a espera parece que o mundo desabou, fica-se sem chão”, confessa, recordando o ano de 2017 onde a maldita palavra entrou na sua vida. De então para cá, uma mastectomia no dia 8 de março de 2018, uma tumorectomia o ano passado e um sem número de outras cirurgias para resolver problemas adjacentes.
Conhecida cara da Casa Cristal, loja para onde entrou aos 14 anos e trabalhou nos 32 seguintes, as cirurgias retiraram-lhe forças e teve de deixar o trabalho porque “não tinha forças para pegar nas peças pesadas”. Por isso, as aulas com Pedro de Medeiros são vistas como um novo horizonte. “Gostei imenso do primeiro dia. Estou a ir devagarinho, mas já fiz umas flexões, coisa que não conseguia. Porque ainda não tive tempo suficiente para mim, para ver o que consigo ou não”.
