Autor: Made in Açores
Da mais ocidental ilha do arquipélago dos Açores, uma característica harmonia escorre de cordas cuidadosamente dedilhadas. Seguem o compasso de dois corações e são feitas ao ritmo da paciência de quem conhece bem os seus especiais feitios. É do jeito e engenho das mãos treinadas de José Serpa que nascem as singulares violas da terra.
A relação do artesão com o instrumento é feita de memórias e retornos. Embora esta seja uma paixão antiga, só há cerca de 13 anos é que se concretizou, quando José regressou à ilha das Flores. Diz ter feito alguns instrumentos nos muitos anos passados na Ilha Terceira, entre os dias agitados de quem muito trabalha, mas com uma constante dificuldade em arranjar tempo e calma. “Estava cansado de viajar e decidi mudar de vida.”, relata.
Hoje em dia, as Flores presenteiam-no diariamente com o que lhe faltava para se poder dedicar à cultura da terra, não só na arte de fabricar as violas como também no cultivo do seu próprio quintal, de onde extrai 90% do alimento que põe à mesa. As mesmas mãos que colhem o que a terra dá semeiam também as formas que dão corpo às violas.
Construí-las é um processo exigente que passa também por uma grande parte visual. Para uma viola, não basta só ser dona do som perfeito; tem também de parecer (e ser) uma elegante ilustração de uma história ímpar. “Tudo o que lá está inscrito faz parte desta história e, segundo dizem, está lá desde o início.”, explica José, ilustrando como ela está vestida de simbologia, da lira, flor de liz ou espiga, ao açor em homenagem ao arquipélago, passando pelo pequeno espelho que, atalha, é a parte que mais lhe custa fazer e nem todos optam por colocar.
A maior simbologia está nos dois inconfundíveis corações, unidos por um fio a que uns chamam de colar e outros cordão umbilical. Entrelaçam-se e formam a chamada “lágrima da saudade”, um sentimento profundamente enraizado na cultura açoriana, dada a história ligada à emigração. “Representa duas pessoas que se separam por uma delas ir embora em busca de uma vida melhor”, desvenda José.
Todos estes elementos podem até fazer com que a Viola da Terra seja um amor à primeira vista mas José sublinha que é com a sua sonoridade que ela arrebata corações. “O som que ela produz é único, sem sombra de dúvida. É isso que mais me apaixona e cativa.”, declara.
Conseguir a afinação perfeita exige tanto de perícia como de uma matemática tão antiga que recua até Pitágoras. “Um milímetro de desvio na medida tem um efeito muito mais negativo do que um metro na construção de uma estrada.”, assegura José, lembrando como foi beber do conhecimento de pessoas mais velhas e experientes no ofício.
“Foram-me explicando e dizendo conforme os pais e avós lhes tinham contado. À medida que ia juntando tudo, a paixão foi crescendo e fui-me dedicando com cada vez mais afinco e com o amor que eu acho que a viola da terra merece.” O método que usa, acrescenta, é muito pouco comum nos dias que correm, já que os instrumentos são maioritariamente feitos de forma robotizada. Por isso, cada peça sua é única e nunca é feita a correr. “Como tenho poucas ferramentas e faço praticamente tudo à mão, demoro, no mínimo, um mês a fazer uma viola, se me dedicar a tempo inteiro.”, afirma.
Para além de as fazer, José também as sabe tocar, e a canção que mais o toca leva-o de volta ao início dos anos 80, a um tempo em que viveu na casa de Manuel Medeiros Ferreira.
“Estava um dia de profundo nevoeiro e o Manuel foi fazer uma viagem para se distrair. Chegado ao que era então o miradouro dos Mosteiros, o cenário era o da típica neblina. Sentou-se, começou a escrever e pouco foi preciso retocar na que é hoje a letra das Ilhas de Bruma.”, conta José, acrescentando que, ao contrário da letra, a música que lhe dá corpo passou por grandes alterações. “Infelizmente não a sei tocar, mas a melodia original nada tem a ver com o que conhecemos hoje. Nem toda ela era propriamente cantada. No seu mais profundo sentimento, o Manuel parava, quase que falava e depois é que começava a tocar. A parte que mais se aproxima da original é o refrão.”, assegura.
José garante que o arrepio sentido pelos açorianos ao ouvir as Ilhas de Bruma é também sentido na pele dos estrangeiros que o visitam e a ouvem pela primeira vez. “Não sei quais são as tuas palavras, mas sei o sentimento que elas transmitem.”, dizem-lhe em várias línguas que vai tentando entender. Tem para eles sempre uma resposta falada numa língua universal, expressa em melodias da terra interpretadas a seu tempo nas cordas de uma viola que toca um número incontável de corações.