São 329 histórias, rotinas interrompidas e infâncias em suspenso. Foi para falar destas crianças, e do direito que têm em crescer com afeto, estabilidade e vínculos seguros, que se realizou a apresentação pública da campanha “Acolher é Proteger: O Acolhimento Familiar nos Açores”, dedicada ao novo regime implementado como alternativa à institucionalização.
Entre estas crianças, 47 têm entre zero a cinco anos, uma idade em que a intervenção é considerada prioritária. Mas há sinais de mudança, mesmo antes da implementação formal do regime, cerca de 20 famílias já manifestaram interesse em saber mais sobre a medida, segundo o Instituto da Segurança Social dos Açores.
Os Açores eram a única região do país onde o acolhimento familiar ainda não estava regulamentado. Esse atraso começa agora a ser enfrentado com um compromisso político e social que coloca a criança no centro das decisões, sublinhou Mónica Seidi, secretária regional da Saúde e da Segurança Social, na sessão de abertura do evento.
Apesar do trabalho reconhecido das instituições, os intervenientes foram unânimes: uma casa de acolhimento não é uma família, sobretudo nos primeiros anos de vida. O acolhimento residencial continua a ser necessário, mas não deve ser a principal resposta para bebés e crianças pequenas.
Mónica Seidi revelou que o investimento anual nestas instituições ultrapassa os nove milhões de euros, estando muitas delas praticamente lotadas, e explicou que o acolhimento familiar poderá também aliviar a pressão sobre estas respostas.
“A criança precisa de alguém que fique”, afirmou o juiz desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, Paulo Guerra, lembrando que numa instituição, não é sempre a mesma pessoa que deita a criança todas as noites. O que compromete a continuidade e a criação de vínculos.
O acolhimento familiar surge, assim, como uma “super medida” de promoção e proteção, explicou Ana Rita Alfaiate, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Embora temporária, é decisiva, ressalva.
O objetivo é sempre o regresso da criança à família de origem, com o apoio técnico e social que permita reconstruir laços. Quando isso não é possível, o projeto de vida pode alterar-se e, em alguns casos, a adoção pode ser equacionada: “Na maior parte das vezes não será a família de acolhimento a adotar a criança”, diz a professora, mesmo que a família manifeste vontade, não é concedida prioridade, salvo se superior interesse da criança o justifique.
Contundo, “não se trata de retirar pessoas da vida da criança, mas de somar”, sublinhou Ana Rita Alfaiate. “Mesmo quando há adoção, a família de acolhimento não desaparece da história da criança”, acrescenta.
Nesse sentido, Paulo Guerra, partilhou uma perspetiva de quem já adotou: “Corajoso não é adotar, corajoso é ser família de acolhimento. Eu quis a minha criança para sempre”. Um testemunho que ajuda a compreender que, mesmo quando o acolhimento se prolonga, aquele não é o projeto de vida para a criança.
No final, ficou uma ideia consensual: Todas as crianças merecem colo e a experiência de uma rotina familiar. A nível nacional, a institucionalização continua a ser a medida mais aplicada, muitas vezes por falta de famílias disponíveis. Não ter medo de acolher, criar laços e, quando chega o momento, deixar ir, também é amor e faz toda a diferença na história de uma criança.
É urgente definir prazos no acolhimento familiar
Em Portugal, é essencial definir prazos claros para o acolhimento familiar, garantindo que as crianças não permaneçam em situações temporárias por tempo excessivo, alertou o juiz desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, Paulo Guerra.
O tempo da infância é curto e irreversível e, sem acompanhamento especializado, o acolhimento pode acabar por se tornar numa espécie de adoção informal. Para Rui Godinho, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é necessário que as equipas técnicas acompanhem tanto a família de acolhimento como a família de origem.
Noutros países europeus, os prazos variam entre seis meses a dois anos, permitindo que a família se organize para o regresso da criança. Em Portugal, a falta de regulamentação torna o processo mais urgente, complexo e compromete o sucesso do regime, conclui.
