Açoriano Oriental
2020
Morte de ucraniano gerou "tsunami" político e apressa reforma do SEF

A suspeita de homicídio em março de um cidadão ucraniano por elementos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa chocou o país, a acusação surgiu célere, mas só gerou um “tsunami” político em novembro.

Morte de ucraniano gerou "tsunami" político e apressa reforma do SEF

Autor: AO Online/ Lusa

A morte de Ihor Homeniuk, em 12 de março, num caso que envolve suspeitas de tortura e homicídio por inspetores do SEF, deixou o Estado português envergonhado junto da União Europeia, mas também perante os seus cidadãos, abalando as estruturas daquele serviço.

No plano político, as críticas da oposição ao Governo chegaram em novembro, sobretudo depois de se saber que a viúva de Ihor Homeniuk nem sequer tinha recebido condolências do executivo e do Presidente da República e que foi ela, inclusivamente, a pagar a transladação do corpo do marido.

Com as revelações sobre a frieza com que a viúva do cidadão ucraniano foi tratada neste caso, que terá sido secundarizado face ao problema global da pandemia de covid-19, assistiu-se, após nove meses de alegada inação, a uma onda de protestos e indignação à escala nacional, visando o SEF, a sua diretora, o ministro da Administração Interna, o chefe do Governo e até o Presidente da República.

No final de setembro, o Ministério Público (MP) tinha já acusado três inspetores do SEF, por crimes de homicídio qualificado de Ihor Homeniuk e de detenção de arma proibida, depois de o cidadão ucraniano ter tentado entrar ilegalmente em Portugal, por via aérea, em 10 de março.

Segundo o MP, após Homeniuk ter sido conduzido ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), no aeroporto de Lisboa, a fim de aguardar pelo embarque num voo com destino a Istambul, os três inspetores do SEF tiveram um comportamento desumano, provocando ao cidadão graves lesões corporais e psicológicas.

A acusação refere que os arguidos, ao algemarem Homeniuk com os braços atrás do corpo, e desferindo-lhe socos, pontapés e pancadas com o bastão, atingiram-no em várias partes do corpo, designadamente, na caixa torácica, provocando-lhe a morte por asfixia mecânica.

Com a vítima estendida no chão, os arguidos, usando também um bastão extensível, continuaram a desferir pontapés, atingindo-a no tronco. Ao abandonarem o local, os inspetores deixaram-na prostrada, algemada e com os pés atados por ligaduras.

Horas depois, como Homeniuk não reagia, foi acionado o INEM e uma viatura médica de emergência, tendo o médico de serviço verificado o óbito por “paragem cardiorrespiratória”.

Os três inspetores — Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva — estão em prisão domiciliária desde a sua detenção, em 30 de março, e vão começar a ser julgados em 20 de janeiro.

Apesar da celeridade da acusação do MP, em 04 dezembro, a comissária europeia dos Assuntos Internos disse confiar que Portugal esteja “a tratar apropriadamente” esta “horrível violação de direitos humanos” e que, após uma reunião com Eduardo Cabrita, se esperavam “algumas mudanças na liderança e nos regulamentos”.

No entanto, só em 09 de dezembro a diretora do SEF, Cristina Gatões, se demitiu, facto aproveitado por quase todos os partidos, com exceção do PCP, para pedirem o afastamento de Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna (MAI), que tutela este serviço, para o qual prometeu uma restruturação, com separação das componentes policial e administrativa

A polémica agravou-se há uma semana quando o diretor nacional da PSP, Magina da Silva, à saída de uma audiência com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, revelou que estava a ser trabalhada a fusão da PSP com o SEF.

No mesmo dia, o MAI afirmou que não cabia a um diretor nacional da polícia anunciar publicamente reformas políticas, e, mais à frente, o chefe do Governo desmentiu o cenário avançado por Magina da Silva, que acabou por dizer que se tratava apenas da sua “visão pessoal”.

Não tardou a haver também partidos a exigir, além de Cabrita, a demissão do líder da PSP.

Antes disso, comentários de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a restruturação do SEF, e eventuais problemas sistémicos naquele organismo, também contribuíram para a crise, com o sindicato dos inspetores a ripostar que o Presidente da República “extrapolou as suas competências” e a alertar que “o problema não se resolve com mudanças de ministros”.

Ouvido posteriormente no parlamento, Eduardo Cabrita admitiu que Portugal se sentia envergonhado, reiterando, em vésperas da presidência portuguesa da UE, que o país é uma referência global pela forma como recebe migrantes e acolhe refugiados.

Face às críticas de ter atuado tardiamente, defendeu-se dizendo que neste caso “não bastava apurar a autoria moral do crime, era necessário ir mais além e apurar se houve encobrimento, negligência grosseira ou omissão de auxílio”.

Cabrita enumerou todas as diligências realizadas para apurar o sucedido, com destaque para a abertura de um processo disciplinar ao coordenador do gabinete de inspeção do SEF, João Ataíde, que de imediato se demitiu, averiguações e procedimentos disciplinares a 12 inspetores e a uma funcionária administrativa por parte da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), entre outras iniciativas.

Durante as explicações aos deputados, o ministro lembrou que na certidão de óbito constava “morte por paragem cardiorrespiratória” e que alegadas agressões só foram conhecidas pelo relatório da autópsia dias depois.

Posteriormente, em entrevista à Renascença e Público, Eduardo Cabrita admitiu que cometeu “erros quer de tempo quer de avaliação” e reforçou que a ex-diretora do SEF não foi envolvida nos processos crime e disciplinar.

Cabe à Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, determinar o valor da indemnização a pagar à mulher da vítima, numa antecipação indemnizatória aprovada recentemente pelo Governo, mesmo antes do culminar do processo-crime que irá julgar os envolvidos na morte de Ihor Homeniuk.

Após ter recebido o apoio expresso do primeiro-ministro, Eduardo Cabrita anunciou que a restruturação do SEF “terá já no início de janeiro o seu primeiro documento legislativo”, num processo a concluir no primeiro semestre de 2021.

O processo será dirigido pelo ex-comandante da GNR e militar Botelho Miguel, nomeado para a direção do SEF na sexta-feira, nove dias após a saída de Cristina Gatões e da indicação para o seu lugar do ex-diretor nacional adjunto José Luís do Rosário Barão.

Depois da nomeação, o MAI ainda anunciou o alargamento do inquérito da IGAI no seguimento de novas denúncias de alegada violência e maus-tratos feitas por outros cidadãos estrangeiros que passaram pelas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa.


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