Autor: Célia Machado/AO Online
No Pico aguarda-se por tempos melhores. A infeção pelo vírus SARS-CoV-2 veio alterar o dia a dia picaroto: menos movimento nas ruas, atendimento limitado, espaços comerciais com horários reduzidos e outros fechados, prestação de serviços ao postigo e até a celebração da eucaristia transmitida nas redes sociais, essas mesmas redes onde a comunidade tem demonstrado preocupação de cada vez que o Governo Regional anuncia mais casos da doença na ilha.
Para já, houve três momentos distintos de
maior impacto no Pico: quando o Governo Regional decretou o estado de
alerta no arquipélago - o que teve como efeito instantâneo a corrida às
superfícies comerciais e o desaparecimento, das prateleiras, de álcool
sanitário e da farinha sem fermento com marca açoriana -; o segundo, a
23 de março, aquando da confirmação do primeiro caso da Covid-19 na
ilha; e, a 29 de março, com a notícia de uma família de cinco pessoas
infetadas e da primeira cadeia de transmissão local na ilha - até então
eram todos casos importados, trazidos de fora da Região.
Aqui, a PSP
elaborou um processo-crime a um casal por desobediência durante o
período de quarentena e as autoridades policiais já fizeram algumas
visitas ao domicílio.
Apesar dos números divulgados respeitantes a
esta ilha e dos alertas constantes, há ainda quem desvalorize a situação
atual e mantenha alguns rituais sociais. É o que se pode ver, por
exemplo, na atividade piscatória, em terra e no mar, na agricultura e em
algumas conversas de rua, entre vizinhos ou amigos, sem que sejam
acauteladas as devidas distâncias entre indivíduos. As medidas
implementadas em diversos espaços de atendimento ao público, em especial
a limitação do número de clientes em simultâneo, também não foi bem
entendida por toda a gente, já que há quem ache que se trata de excesso
de zelo.
Quando a doença tem de esperar
Com a pandemia, no
Pico há questões de saúde que têm de esperar. Falámos com um utente, com
historial de doença oncológica, que aguarda por uma consulta de
Hemato-Oncologia no Hospital da Horta. A ansiedade é grande e tanto o
utente como a família desesperam, já que as análises mais recentes - das
quais teve conhecimento no início de março - revelaram valores tumorais
“acima do normal e do que se vinha verificando em anteriores análises,
desde que a doença entrou em fase remissiva”. O mesmo utente, que
prefere que o seu nome se mantenha no anonimato, diz que o médico de
família pediu uma consulta com caráter prioritário para o Hospital da
Horta, mas, daquela unidade de saúde, teve como resposta “que o utente
não deve dirigir-se àquele hospital, nem fazer mais exames”, tendo
marcado a consulta para o final de abril. Até lá, o coração aperta.
Empresários preocupados
Se
a saúde é uma questão de relevo, a economia tem, também, a sua quota de
importância. Nesta ilha houve uma fase de alguma confusão com vários
empresários a fechar os estabelecimentos comerciais para depois
reabrirem as portas e implementarem as medidas entretanto decretadas,
mas não excluem tomar medidas adicionais e mais drásticas conforme o
evoluir da situação.
Apesar dos mecanismos de apoio criados, quer
pelo Governo da República, quer pelo Governo Regional, Rui Lima,
presidente da Associação Comercial e Industrial do Pico, mostra a sua
preocupação com a economia da ilha, em especial com as microempresas -
menos de dez funcionários -, que ocupam a maior fatia do tecido
empresarial picaroto.
“Pondo em causa a maioria dessas empresas,
põe-se em causa todo o trabalho desenvolvido até agora na ilha e a
estabilidade económica que estávamos, de certa forma, a viver, tendo em
conta a trajetória que se fez em várias áreas”, sustenta o representante
dos empresários, que coloca algumas interrogações quanto aos apoios já
anunciados pelos governos: “Tenho algumas dúvidas de que os apoios
respondam, de forma eficiente, às necessidades das microempresas. As
características das microempresas têm de ter uma atenção especial nos
apoios criados pelo governo, que devem ser direcionados para elas e não
de uma forma abstrata e que seja difícil de aceder a esses mesmos
apoios”.
“Não queremos uma solução de ‘bombardeamento’ de dinheiro, mas também não queremos um sistema que seja difícil de aceder”, enfatiza, revelando que têm chegado relatos de empresários “desesperados e com sérias dificuldades”.
O turismo tem, também nesta ilha, um
peso significativo na economia. Ivone Quadros, empresária há 22 anos,
com alojamento turístico em espaço rural na Piedade, diz que é a “pior
situação” que vive neste ramo desde que iniciou a atividade. Em
fevereiro os turistas começaram a cancelar as reservas e Ivone Quadros
decidiu, face à evolução da pandemia, aceitar reservas para estadias
apenas para setembro.
“A época alta dos turistas fazerem reserva é
agora, a partir do mês de março; maio e junho vão ser complicados. Este é
um ano para esquecer”, sublinha.
Já Rui Maciel, sócio-gerente de
duas empresas de alojamento local em São Roque e na Prainha, desde 2015,
diz que houve menos reservas nos meses de janeiro e fevereiro e, a
partir daí, “as que existiam foram canceladas. Estamos a aceitar
reservas para estadias a partir de julho. Temos um funcionário nesta
fase, mas, durante o verão, são sempre dois. Este ano já não vamos
admitir o segundo e estamos a tentar, ao máximo, manter o que temos”,
salienta. “Sem dúvida nenhuma o impacto negativo que tivemos até agora
foi este, devido à pandemia”, frisa o empresário.
César Melo, gerente de um minimercado na Piedade desde fevereiro de 2018, implementou rapidamente todas as medidas decretadas pelas autoridades, mas tem algum receio pela exposição a que as cinco funcionárias estão sujeitas diariamente no atendimento. Por outro lado, preocupa-o o facto de poder ter rutura de stock de certos bens. “Alguns dos nossos fornecedores, no continente, já estão com dificuldade para se abastecerem”, realça, defendendo que em alguns produtos “deveria ter sido implementado o racionamento quando foi decretado o estado de alerta nos Açores”.
No Cais do Pico, Luís Sousa, gerente de uma loja de ferragens e bricolage, há 38 anos em funcionamento, realça a “preocupação dentro da incerteza gerada pela pandemia”. “Há muito menos vendas. Já houve um primeiro ajuste no horário com a redução do número de clientes na loja e rotação dos cinco trabalhadores. Há também uma grande incerteza devido à dificuldade na entrega de mercadoria”. Comparando com tempos anteriores, a gerência afirma que “este é o momento que tem mais impacto na afluência do público. Houve outros momentos, nomeadamente a crise de 2008, emque havia menos poder de compra e ainda não é possível perceber se este impacto na economia vai ter a proporção que teve a crise financeira de há 12 anos”, conclui.
Já Ricardo Ferreira, com três lojas de ramos diversos (vestuário, bazar e papelaria) está apenas com um espaço aberto nas Lajes, tendo fechado outro naquela vila e um terceiro em São Roque. Para além dele, mantém agora apenas uma funcionária.
Com duas dezenas de anos de experiência no ramo empresarial, Ricardo Ferreira está ciente dos constrangimentos e dificuldades que o impacto gerado pela pandemia vai trazer a toda a gente e tem receio de que os mecanismos de apoio divulgados, pelos governos Regional e da República, não sejam concretizados tal como têm sido anunciados.
“Estamos também aqui a tentar servir alguém que precise” e, por isso, “aconselhamos os mais idosos a ficar por casa”. Se necessitarem de algo urgente da loja, providenciam esse serviço.
Na
Criação Velha, as rotinas diárias de Ana Casals e Míria Rodrigues
mudaram “radicalmente”. As mostras de artes e os concertos de música ao
vivo ficam agora parados e, no espaço que gerem há quatro anos,
aposta-se mais na confeção de comida tanto para levar como para ser
entregue ao domicílio. “Optámos por continuar em funcionamento porque
temos de fazer face às despesas mensais. Algumas das medidas
governamentais de apoio são bem-vindas e, assim, não temos de recorrer a
ajudas financeiras nem de contrair empréstimos”, explica Ana Casals.
Para além de todas as alterações que procederam dentro do seu
estabelecimento, ainda informam “os clientes habituais de que não podem
fazer aglomerados na rua”.
A situação de pandemia é “séria”, mas têm esperança de que “passe mais rapidamente do que o esperado”.