Açoriano Oriental
Covid-19
No lar do Nordeste onde morreram 12 pessoas, a vacina traz “grande satisfação”

No lar da Santa Casa da Misericórdia do Nordeste, onde o novo coronavírus infetou 54 pessoas, das quais 12 morreram, a chegada da vacina levanta dúvidas, mas traz uma “grande satisfação”.


Autor: Lusa/AO Online

“A vacina… com certeza!”, afirma Boanerges Pacheco, um camponês de 80 anos, que vive neste lar da ilha açoriana de São Miguel há dois anos.

Na estrutura, que albergava 54 idosos, 38 ficaram infetados e, destes, 12 morreram. O vírus infetou também 13 funcionários e três familiares de funcionários.

O edifício organizado à volta de um pátio, como um claustro, tem agora portas a separar os corredores que formam as arestas do quadrado. A circulação está limitada. Desde o dia 24 de dezembro, e até 07 de janeiro, são permitidas duas visitas de 15 minutos a cada utente. As visitas acontecem numa sala com uma mesa separada por um acrílico e os visitantes acedem à sala pelo exterior do edifício. É lá que a Lusa fala com os utentes.

Boanerges escapou à doença. Por isso, em breve, deverá ser chamado para ser vacinado.

Já muito ouviu dizer sobre a vacina - “aquilo é passageiro, aquilo não conta nada, outros dizem que aquilo não vale a pena” -, mas os rumores não dissuadem o camponês, natural da Lomba da Fazenda, freguesia do concelho do Nordeste.

“O que é que eu vou descartar aqui?”, questiona. “Vou descartar uma bisca… É levar para diante! Há de ser o que Deus quiser”, afirma.

Da janela do quarto, Celeste Soares, de 85 anos, foi assistindo à partida dos utentes do lar que, conforme eram diagnosticados, iam sendo levados, de acordo com a gravidade do quadro clínico, ora para a enfermaria covid-19, criada no Centro de Saúde do Nordeste, ora para o Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada, onde a primeira idosa infetada deste lar contraiu o vírus.

É com lágrimas nos olhos que Celeste revê o dia em que viu o seu marido a ser levado: “Eu disse assim ‘ai, Senhor, nosso Senhor permita que eu não tenha também’. Ao cabo de dois dias, ou o que foi, veio um enfermeiro. Ele disse ‘senhora Celeste, eu quero dar-lhe uma notícia’ e eu disse ‘o meu marido está pior?’. E ele: ‘Não… A senhora também tem o vírus’.”

Muitos dos utentes “não se iam apercebendo” da gravidade da situação, porque estavam isolados nos quartos. “Só pessoas como a senhora Celeste, que eram pessoas autónomas, que se iam pondo à janela, se iam apercebendo da quantidade de pessoas que saíram”, explica a diretora clínica do lar, Patrícia Cambóia.

“Houve um dia em que saíram muitos – saíram 15. Aí, foi o dia mais complicado”, conta.

A responsável diz que “chegar ao pé de um idoso e dizer-lhe que está contaminado com covid-19 é muito complicado”.

“Aqueles olhos ficam a olhar para nós, do tipo ‘para onde é que eu vou e será que regresso?’”, acrescenta.

O vírus foi gentil com Celeste: “Não sentia nada… Era uma cabeça maldisposta e [ficava] mais na cama. Não tive sintomas nenhuns”, conta.

Para acelerar a recuperação, com frequência “cheirava álcool, que era para matar o bichinho, mas aquilo desapareceu da mesinha de cabeceira”, lamenta.

Aos 85 anos, Celeste recuperou de uma doença que é particularmente severa com os mais velhos. Também o seu marido, Jeremias, escapou à doença. Com 94 anos, é o recuperado mais velho do lar.

Não tem “boca de agradecer a Deus” pela recuperação, mas é cautelosa com a vacina, que não terá de levar, por já ter estado infetada, mas que, ainda assim, a deixa arreliada.

“Tenho medo dessa vacina. Confesso: é verdade, tenho muito medo dela. Porque eu sou alérgica a muita coisa: camarões, lapas… mariscos, e sou alérgica a um medicamento. Eu não sei o que é que aquilo vai fazer, se é bem, se é mal”, explica.

Se para alguns a vacinação traz ansiedade, a outros traz “grande satisfação”, como ao provedor da Santa Casa da Misericórdia do Nordeste, José Carlos Carreiro.

“Pelo que nós passámos, não há dúvida nenhuma de que a vacina representa um grande avanço no controlo da epidemia e na prevenção da doença e, por isso, vemos com grande satisfação”, afirma.

O responsável destaca a abertura temporária do lar a visitas, durante o período natalício, como um “bálsamo” – “a alegria que se gerou trouxe um alento muito grande”.

Ainda assim, segundo a a diretora clínica, as regras que ditam que cada utente pode receber apenas duas visitas, com 15 minutos de duração, “são complicadas em famílias numerosas” e geram “conflito familiar”.

Patrícia Cambóia coordenou a equipa que ficou no lar durante o surto e teve de assumir todo o tipo de funções quando se viu com apenas 12 funcionários para cuidar de 54 idosos.

Era também difícil motivar a equipa, porque alguns dos utentes são familiares dos funcionários: “Tive a situação de uma senhora que viu a mãe e a sogra saírem. Pensei para mim ‘bem, ela vai atrás’, mas não. Graças a Deus consegui fazer a equipa toda chegar até ao fim”.

As 12 mortes provocadas pelo surto ainda pesam na memória daquele lar, mas “os utentes que faleceram, na sua grande maioria, eram pessoas com idade avançada, com problemas de saúde, que, se calhar, se não falecessem de covid-19, tinham falecido no decorrer deste ano”, explica a coordenadora.

Quem fica lamenta também a perda de autonomia dos utentes. A diretora técnica adianta que “o grau de dependência [dos idosos] se agravou significativamente” desde a imposição de restrições à circulação em toda a estrutura.

Antes de a pandemia chegar, havia “dois, três utentes autónomos”. Agora, não há nenhum.

Para Boanerges, era habitual ir passar o fim de semana a casa, com a mulher Eduarda.

“Ela faz tudo o que eu gosto”, diz com satisfação visível no olhar, quando fala das favas que Eduarda lhe prepara. Este ano, queria ir às terras que tem na Lomba da Fazenda para semear favas, mas quando lhe explicaram que, se o fizesse, teria de ficar 14 dias em isolamento, abdicou da ideia.

“’Pró’ quarto nunca mais!”, exclama. “Fiquei farto. Estou teso das pernas. Não posso andar por causa disso… sinto as pernas todas dormentes”.

Aos 80 anos, Boanerges tem ainda a mãe viva, já com 100 anos, ainda que longe, no Canadá, onde moram também os seus oito irmãos.

Quando se queixa das pernas, Patrícia lembra-lhe que, se sair à mãe, ainda tem muito que viver: “Vai ficar bom, que o senhor é rijo!”, atira.

“Eu penso que sim… A idade também não está muito velha demais”, responde Boanerges, entre risos.

A idade também não pesa a Celeste Soares, que, durante a sua vida ativa, fez “vida de casa”: “ir para a terra, semear batatas, feijão, milho, era vida de mulher – cozer pão, ir à lenha, ir ao moinho buscar farinha para fazer pãozinho…”.

Também no lar ajudava a “acartar as cadeiras dos utentes para o refeitório, ia comprar coisas” para outras idosas, “ia ao centro de saúde, à segurança social, ia entregar o cheque ao correio, pagar a farmácia”.

“Consolava-me a viver assim. Agora é isto, um isolamento… Para quem andava como eu andava, ficar assim… isto é muito grave”, lamenta.


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