Açoriano Oriental
“Eu vivo pelo fascínio das palavras e de contar histórias”

Henrique Levy. Poeta, romancista e ensaísta, escolheu os Açores  para viver, atraído pela riqueza humana e paisagística do arquipélago. Em São Miguel fundou a N9na Editora, dedicada à poesia. O autor destaca a resiliência dos açorianos e a importância das suas raízes culturais


“Eu vivo pelo fascínio das palavras  e de contar histórias”

Autor: Ana Carvalho Melo

Poeta, romancista e ensaísta, Henrique Levy escolheu os Açores para viver há dez anos, por se identificar com a paisagem humana deste arquipélago.

“Vivi durante muito tempo em vários países de África, depois na Europa e na Ásia, onde fui professor em Macau. Mais tarde, vivi nos Estados Unidos. Quando regressei à Europa, não me encontrei. E como vinha todos os verões para os Açores, que conhecia muito bem e com os quais me identificava muito pela paisagem geográfica, mas essencialmente pela paisagem humana, porque acho que os açorianos são os grandes guardiões da cultura portuguesa, pensei: por que adiar mais a vida no lugar onde quero morrer? E vim para São Miguel”, conta.

Um percurso de vida que foi também uma jornada de descoberta. “Eu não pertenço a lado algum, sou filho de um cabo-verdiano e de uma portuguesa e tenho em mim as três religiões do Livro - o judaísmo, o cristianismo e o islão - que fundam as minhas raízes humanistas. Sou profundamente conhecedor destes livros, porque não poderia escrever sem conhecer o aspeto mais maravilhoso do homem, que é o que o liga a Deus”, afirma.

No entanto, diz que foi na ilha das Flores, pela boca de um pastor de três vacas, que recebeu “a mais bela lição de vida”.

“A mais bela lição de vida encontrei na ilha das Flores, quando perguntei a um pastor: ‘O senhor não sente solidão?’. Ele olhou para mim e disse: ‘Solidão, senhor, não sei o que é. Eu tenho mar, Deus e a senhora minha mãe’. De facto, não valorizamos o essencial”, realça.

Dos Açores, onde diz que foi muito bem recebido, destaca a história e a resiliência dos açorianos. “É um povo heroico e grandioso e o espelho deste povo é Bento de Goes”, referindo-se ao vila-franquense e herói do seu livro “Bento de Goes: uma longa caminhada na Ásia Central”, acrescentando: “Só um açoriano poderia ter feito o que ele fez aos 47 anos”.

Foi também nos Açores que Henrique Levy descobriu Marianna Belmira de Andrade, uma poetisa de São Jorge que viveu no início do século XX e que o levou a fundar a N9na Editora, a única editora dedicada à poesia na Região.

“Marianna Belmira de Andrade, com uma cultura vastíssima, morreu em 1921 e é como uma pessoa de família que eu conheço muito bem. Uma mulher de uma coragem extraordinária, que casou com um fidalgo de São Jorge, de quem se separou ao fim de pouco mais de um ano de casamento. Depois tornou-se professora primária e instalou-se na Urzelina, onde criou o filho e foi uma mulher feliz”, salienta, explicando que “para poder publicar os poemas de Marianna Belmira de Andrade, fundei a N9na Editora, e hoje é o livro que mais vende”.

A obra de Marianna Belmira de Andrade está publicada em “A Sibylla - Versos Philosophicos” (2020), livro editado e anotado por Henrique Levy, cuja primeira edição data de 1884. A partir daí, começou a editar outros poetas, “mas poetas de muita qualidade de acordo com a minha sensibilidade estética, porque acredito na poesia”.

E é como poeta que Henrique Levy se descreve, tendo publicado oito livros de poesia: “Mãos Navegadas” (1999); “Intensidades” (2001); “O Silêncio das Almas” (2015); “Noivos do Mar” (2017); “O Rapaz do Lilás” (2018); “Sensinatos” (2019); “Poemas do Próximo Livro” (poemas traduzidos para língua cabo-verdiana e castelhano) (2022); “Livro da Vacuidade e da Demanda do Vento” (2022); “Estado de Emergência”, em coautoria com Ângela de Almeida (2020); “Silêncio” (2021), tradução para castelhano de Coloma Canals; e “Elementos” (com Ângela de Almeida e Daniel Gonçalves) (2022).

“Eu vivo pelo fascínio das palavras e de contar histórias. Comecei por escrever poesia. Eu sou poeta, mas é na ficção que me sinto mais à vontade. A poesia é muito mais exigente, é um jogo elaborado de palavras em que eu me revelo muito mais”, afirma.

Na ficção, Henrique Levy acaba de publicar “O Drama de Afonso VII de Portugal”.

“Este é um livro que convoca toda a humanidade. Todo o Homem está aí com a culpa, o seu medo e a solidão das suas decisões. Este livro é uma homenagem ao 25 de Abril, com um rei que liberta Portugal de uma República fascista, mas que nos inícios dos anos 90 se confronta com a decisão de se sentar no trono da Jugoslávia e evitar a guerra na Europa ou abandonar Portugal à sua sorte”, descreve.

“Este foi o recado que quis trazer ao mundo neste momento, em que não podemos ter medo, nem sentir culpa da situação em que a Europa parece estar a cair. E para isso, temos de ter uma consciência livre e convocar a consciência da Humanidade que tanto fez para que chegássemos aqui”, acrescenta.

“O Drama de Afonso VII de Portugal” é o sétimo romance deste autor. Um conjunto de livros com cariz histórico ficcionado, onde dá a conhecer Bento de Goes, vila-franquense que no século XVI fez uma travessia a pé que ligou a Índia a Pequim com um objetivo cultural, de descrição das línguas e das religiões por onde passou. Também retrata a vida de Maria Bettencourt, em “Maria Bettencourt: Diários de Uma Mulher Singular” (2019), numa sátira aos costumes da sociedade de Ponta Delgada em meados do século XX através dos diários de uma mulher micaelense, e uma visita régia aos Açores pelo olhar da mulher do rei, em “Degredos da Visita Régia aos Açores” (2020).

Trata-se de um conjunto de livros que, como salienta o autor, possuem em comum uma forte presença feminina. Nesse sentido, Henrique Levy destaca que em “Vinte e Sete Cartas de Artemísia”, romance galardoado com o Prémio Literário Natália Correia (2022), convoca a religião, a poesia, a política e a teologia, porque convoca a vida das mulheres e a forma como sempre se tentaram impor a uma sociedade patriarcal que as aprisiona.
Em “As Memórias da Madre Aliviada da Cruz” (2021), faz uma sátira às vidas das mulheres que viviam enclausuradas em conventos no início do século XIX e à liberdade sexual com que estas mulheres enclausuradas viviam.

“A grande maioria das minhas personagens são mulheres. Eu sempre fui um feminista e um defensor da igualdade entre homens e mulheres, mas sou feminista porque sou profundamente egoísta, ou seja, porque eu só serei livre quando todos à minha volta forem livres. Enquanto houver pessoas discriminadas, neste caso pelo seu género, eu não serei livre”, explica.

“Não é por acaso que a consciência é feminina, mesmo a de um homem. O facto de haver palavras femininas como ‘Humanidade? ou ?Pessoa’ que designam um conjunto que contém o masculino, isso não afeta o género masculino. A língua portuguesa nunca foi sexista”, reflete.

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