Vasyl assistiu ao massacre em Bucha e hoje recupera com 'mão' de Portugal
Ucrânia/1 ano
24 de fev. de 2023, 09:43
— André Campos Ferrão/Lusa/AO Online
Na
madrugada de 24 de fevereiro de 2022, Vasyl Melnychuk, na altura com 71
anos, acorda em sobressalto. A mulher acorda pouco depois e os dois são
surpreendidos com a notícia: a Federação Russa está a invadir a Ucrânia.
2014 foi um ensaio, agora Moscovo queria chegar a Kiev.Três
dias depois, os militares russos entraram em Bucha, uma pequena cidade
nos arredores da capital ucraniana. “Quando chegaram, um soldado, um
miúdo, que não foi agressivo, disse-me: 'Não estamos aqui porque
queremos, estamos a cumprir uma ordem'”, explica Vasyl à Lusa em Bucha.Vasyl
Melnychuk está a falar do outro lado de uma vedação que delimita o que
resta da sua casa daquela que foi outrora a de um vizinho. É um homem
bem-disposto e sorri muito enquanto conversa. Tem três dentes de ouro,
visíveis quando esboça um sorriso, agasalhado com um gorro preto, uma
camisola de gola alta e um casaco. Estão -2 ºC nesta tarde de
quinta-feira.À Lusa contou que foi pelo
buraco da vedação que viu chegar a primeira coluna de tanques russos e
foi pelo mesmo buraco que a viu “quando foi destruída”.A
mulher, a filha, o genro, os netos, os bisnetos e também Bim, o cão da
família, estavam lá quando ouviram o som das lagartas ao longe:
“Disseram-nos que se tivéssemos alguma coisa branca, um pedaço de
tecido, uma bandeira, para colocarmos na casa e na vedação, para
ficarmos em segurança.”Naquele dia Vasyl,
tinha ido comprar “muita carne” para uma festa, pelo que havia comida em
casa, mas rapidamente percebeu que não tinha como a cozinhar. A
eletricidade e o gás rapidamente desapareceram: “Só conseguimos comer
porque tínhamos um grelhador.” Uns dias
mais tarde, já decorriam os combates na linha da frente entre as forças
russas, que tentavam cercar Kiev, e as ucranianas, que tentavam
reconquistar Bucha.Vasyl e o genro saíram
“para comprar pão”. O genro, está sentado num banco atrás de Vasyl
Melnychuk a ouvir, curvado, a fumar. Levanta a cabeça e volta a baixá-la
quando o sogro descreve o que aconteceu.“Tínhamos
saído e encontrámos os soldados russos, mostrámos a nossa bandeira
branca, mas gozaram connosco e ameaçaram-nos. Pensei: 'Estes não são
como aquele miúdo do primeiro dia'. Lá nos deixaram passar, mas umas
horas depois, um deles, pegou na arma e matou a Anna e a família dela,
que estavam só a passar por ali”, conta. Vasyl demonstra dificuldade em
relatar o que viu ser feito aos seus conterrâneos, mas quer fazê-lo para
deixar o testemunho.As atrocidades
repetiram-se. Um vizinho, Nikolai, foi morto “porque tinha um antigo
uniforme ucraniano, não era de agora, era antigo” e uma vizinha foi
baleada e acabou por morrer depois de pedir a um grupo de militares
“para saírem da sua propriedade”.Vasyl faz
sinal com a mão para que Bim pare de ladrar e aponta para um prédio,
parcialmente destruído: “Estavam a utilizar aquele prédio como
escritório e para guardar munições. Quando perceberam que iam perder, vi
um soldado a empurrar pessoas para a rua. Pegou na arma e matou-as.
Deviam ser umas 50.”Vasyl é russófono e
diz que quando os militares russos entraram em Bucha “não estava
chateado”, já estava habituado porque “em miúdo foi militar da União
Soviética”. Mas durante a ocupação percebeu que “aqui era diferente”.
Havia “soldados verdadeiros”, que apenas estavam a combater, e havia “os
outros, que pareciam criminosos, roubavam e matavam”.Vasyl
pensou que a sua casa teria sido poupada, mas quando a coluna de
tanques russos foi destruída, as explosões rebentaram-lhe com as
paredes. Um ano depois, ainda encontra estilhaços e partes de tanques,
como um pedaço de metal e cinzento, que mostra à Lusa: “Encontrei este
há umas semanas e guardei-o.”“O telhado de um vizinho meu ruiu porque o canhão do tanque caiu-lhe em cima”, descreve.Desde
então, a família está toda a viver na garagem, para onde arrastaram o
sofá, alguns colchões, e muitas mantas, para sobrevivrem ao inverno. Só
Bim tem direito a uma divisão própria, a casota no quintal.Em
toda a rua ecoam sons de martelos, serras elétricas, o ar transporta o
cheiro a madeira. Com a ajuda de militares, o quarteirão é reconstruído e
a vizinhança cicatriza conversando, ocupando-se. A reconstrução está a
avançar a passos largos. Os buracos provocados pelos estilhaços estão a
ser preenchidos, já há um telhado novo e Vasyl espera que a casa fique
exatamente como era “antes da invasão”.“Isto
foi possível por causa de Portugal”, revela: “Quando fui à
administração da cidade, porque aprovaram a reconstrução da minha casa,
perguntei de onde vinha o dinheiro para isto e responderam: 'Da Suíça e
de Portugal'.”A mulher de Vasyl Melnychuk
chega do supermercado, dá-lhe um beijo na bochecha direita e agarra-lhe o
braço. Cumprimenta os jornalistas da Lusa, mas não se demora, nem tem
interesse em conversas. Vasyl brinca e diz que pode reconstruir a casa,
“mas nunca vai estar acabada”, a mulher “quer sempre alterar mais alguma
coisa”.Há um ano considerava provável uma invasão, mas nunca achou “que chegasse aqui perto”.Volvidos
365 dias, acredita que a Rússia voltará a tentar, “mas desta vez não
vai conseguir, os militares [ucranianos] estão preparados, não voltam a
entrar” na cidade.Mas como certezas totais
ninguém as tem, este reformado quis ajudar e alistou-se para trabalhar
na produção de munições, ainda que poucas, ali perto. A localização,
“não pode ser revelada”, sob pena de passar a ser um alvo russo, mas “é
algures por aí”.Depois da conversa com a
Lusa, Vasyl Melnychuk voltou a pegar nos arames que estava a arrancar da
casa, guardou-os e foi sentar-se um pouco. Mantém o sorriso, mas pausa
por um instante para um desabafo: “Não é fácil ver o que vi”.Bucha
e Irpin estiveram sob ocupação das tropas russas durante um mês. Só
quando as Forças Armadas ucranianas repeliram os militares russos é que
se pôde começar a levantar o véu às atrocidades cometidas.A
morte tingiu as ruas e Vasyl presenciou-a numa linha da frente, que
muda consoante a evolução do conflito, mas que deixa sempre o mesmo
rasto de destruição. Bucha e Irpin estão a cicatrizar a um ritmo muito
maior do que a maioria das cidades ucranianas e gozam hoje de paz. A
guerra entra, mas agora pela televisão.A
neve cobre o chão e as casas, mas não esconde as memórias do que naquela
estrada se passou, dos vizinhos que nunca mais verá, dos “crimes” que
presenciou.“Ainda tenho cabelo, apesar de
ser uma família grande”, diz Vasyl, entre risos, enquanto levanta o
gorro para comprovar que, de facto, ainda tem cabelo. E com o gesto de
algum modo alivia as penosas memórias de um ano de guerra.