Um desfile de Carnaval para dar voz às crianças de Ponta Delgada
7 de fev. de 2023, 09:53
— Lusa/AO Online
Na
freguesia da Fajã de Baixo, Ponta Delgada, ouviu-se, na semana passada,
uma imitação do cântico típico dos cagarros, as aves que pululam as
costas das ilhas açorianas, entoada por crianças dos 6 aos 11 anos, que
circulavam à volta de uma palmeira, erguendo cartazes com palavras de
ordem.“Não às drogas”, “Não queremos mais
turismo”, “Felicidade e amor”, “Não atirem mais lixo para a relva”, eram
algumas das mensagens presentes na sexta-feira, no desfile que foi o
culminar de um processo de uma semana, cujo início se assemelhava a uma
manifestação, organizado no âmbito da Academia Humana, o programa de
formações da Candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura.Do
Centro Cultural Natália Correia, o cortejo seguiu para o largo da
igreja da Fajã de Baixo. As crianças, com costumes coloridos, evocavam a
poesia de Natália Correia e cantavam músicas originais, como o “Rock da
Galinha Assassina” ou a paródia “Funk da Fajã de Baixo”.O
desfile, pontuado por momentos coreografados e outros de liberdade,
seguiu a batuta de Lívia Diniz, a artista que organiza “blocos
carnavalescos” no Brasil com milhares de crianças e que esteve dez dias
em São Miguel propositadamente para a iniciativa intitulada “Se estas
ruas fossem nossas…”“As crianças chegaram,
criaram personagens mágicas e começaram a fazer fantasias para as
personagens, construindo um universo próprio. Foi criado um conceito
para cada personagem e um conceito para o ‘bloco’ [desfile]”, explicou
Lívia Diniz à agência Lusa.Mais
“importante” do que o espetáculo final foi o “processo ao longo da
semana”. As crianças construíram os próprios costumes e decidiram, em
conjunto, o conceito do cortejo através de uma assembleia que definiu o
tipo de música, os ritmos e a organização do desfile.“Na
Assembleia, umas defenderam que o desfile só devia ter rock, outras
não. Após a discussão, algumas mudaram de opinião. Depois votaram para
escolher os ritmos. Faz parte de um processo de experimentação da
democracia participativa”, salientou.A
criação do desfile procurou, portanto, apelar ao imaginário individual
das crianças ao mesmo tempo que “fortaleceu” a “dimensão coletiva”.“Assim,
elas [as crianças] vão treinando a postura e o discurso dos corpos
políticos. Esses corpos políticos não têm de estar chateados. Fazer
política, tomar decisões em coletivo, não precisa de ser chato. Pode ser
divertido. É essa sementinha que tentamos plantar”.Matilde
Oliveira, de 7 anos, foi uma das crianças que integraram o desfile,
exibindo um cartaz que pedia a rejeição às drogas. Criou um fato de
“gatoleta”, uma mistura entre gato e borboleta, e revelou que gosta
muito do Carnaval porque é “sinónimo de amor e alegria”.“A
gente estava numa atividade que tinha de escrever uma coisa para
melhorar as ruas. Como há muitos problemas de pessoas com drogas, uma
forma de melhorar era as pessoas dizerem não às drogas”, considerou.Já
Maria Santos, de 6 anos, vestida de borboleta azul, aproveitou a
oportunidade para alertar os “outros meninos para a poluição” da ilha.“O
meu cartaz dizia que eu queria menos poluição para o mundo e menos
carros na rua. Os carros poluem o ambiente e o lixo anda a
incomodar-me”.São várias as mensagens
presentes no desfile. Joaquim Batista, de 6 anos e vestido de “Súper
Herói Joaquim”, pediu “paz e amor” porque defende que as “pessoas deviam
ser mais amorosas e alegres”.Já Sofia
Albergaria, uma “bailarina de cabelo doirado e ruivo”, apontou as
críticas ao turismo: “O meu cartaz dizia que o turismo é mau porque ele
polui muito a nossa cidade e a nossa ilha”.O
projeto, que instiga a participação cívica das crianças, contou com a
colaboração do maestro Marco Torre e da Habitat, uma plataforma de
reflexão da ilha de São Miguel.O diretor
artístico da candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura
em 2027 (cujo trabalho só termina em março, apesar de Évora já sido
declarada vencedora), António Pedro Lopes, justificou o projeto com a
necessidade de criar “ofertas capazes de empoderar as crianças”.“No
fundo, é tentar perceber como os adultos podem dar apoio aos sonhos, à
imaginação e contribuir para tomarmos a criança como um cidadão ativo,
que tem uma voz e uma coisa a dizer, que tem imaginário e uma forma de
contribuir para o mundo”.António Pedro
Lopes realçou, sobretudo, o “processo de aprendizagem” das crianças ao
longo das sessões, onde se procurou “desafiar a dimensão cívica” dos
mais pequenos através de um contexto de festa.“O
Carnaval é também uma escola de conhecimento que traz muitos saberes e
que no fim conta uma história. Junta uma comunidade em torno de uma
história, com um teor social ou de crítica”.A
esse propósito, Lívia Diniz acredita que se os adultos “abrissem espaço
à espontaneidade e à alegria” das crianças, a transformação da
sociedade “seria muito mais confortável”.“As
crianças são como uma rachadura no tempo. Elas têm acesso a certas
informações que não aproveitamos porque não permitimos que elas se
expressem. Quando a gente abre este espaço de escuta, dando a
oportunidade para as crianças ensaiarem futuros diferentes, abrem-se
novos mundos”.No fundo, e como as próprias
crianças cantaram, trata-se de construir um futuro com “liberdade no
coração”: “o que eu quero é o futuro, sem muro, nem furo, com ananás a
rebentar e criaturas a inventar”.