2 de mar. de 2022, 16:04
— Pedro Caldeira Rodrigues/Lusa/AO Online
“A
cidade está sem luz para evitar que seja detetada pelos aviões. E toda a
população também desligou as localizações dos telemóveis”, indica
Tatiana, 43 anos, após ambas se acomodarem na carrinha, onde também
viajavam jornalistas portugueses, e com Eva ainda agitada, a perguntar
pelo pai. Depois, acalma, desenhos animados no telemóvel, bolachas, e
acaba por adormecer. “Vê muitos vídeos e
filmes estrangeiros, quando fala connosco mistura palavras da nossa
língua e inglês”, diz a mãe, também sempre pegada ao telemóvel para
receber e enviar mensagens aos familiares próximos, e atualizar
informações. Tatiana foi uma das três
ucranianas que viajaram com os nove jornalistas portugueses – duas
equipas da SIC, uma da RTP, uma da CNN Portugal e o enviado da Lusa -
que saíram de Kiev pouco passava das 9h00 da manhã de 01 de março, numa
debandada de muitos ‘media’ internacionais que se encontravam em
reportagem pela capital ucraniana. As duas primeiras acompanharam os
jornalistas portugueses desde a capital ucraniana, onde nasceram. Após
muitos contactos e uma tentativa falhada de viajar de comboio em
direção a oeste e à fronteira polaca no último dia de fevereiro, a
embaixada portuguesa conseguiu contratar um motorista e carrinha, um
aluguer de 5.000 dólares repartido pelos jornalistas. Quando
Tatiana e a filha foram recolhidas às 19h00 em Kamianets-Podilskyi,
sudoeste da Ucrânia e atravessada pelo rio Smotrich, já parte
considerável do percurso de 635 quilómetros, também feito por estradas
secundárias e sinuosas, tinha sido percorrido. A
fronteira com a Moldávia não estava longe e já tinham passado dez horas
desde a saída de Kiev. Chegou-se ao destino final em plena madrugada,
quatro da manhã. Um total de 19 horas.
Quando Tatiana se juntou ao grupo, a cidade estava escura, como breu.
Apenas alguns ténues focos de luz que pareciam suspensos, pequenos
retângulos provenientes de janelas de alguns dos grandes edifícios junto
à estrada. Ou dos semáforos em funcionamento, de um ou outro veículo.
Um silêncio arrasador. A história de
Tatiana atravessa as convulsões registadas nesta parte da “outra
Europa”, eslava e ortodoxa. Nasceu em 1988, cidadã da União Soviética.
Obteve a nacionalidade ucraniana após a independência em 1991 após a
desagregação da União Soviética. E também tem passaporte português. O
pai era médico cirurgião militar de nacionalidade russa. A mãe também é
médica. Antes de Tatiana nascer, foram cooperantes em Moçambique. Após a
morte do marido, e por entender português pela sua estadia na antiga
colónia, decidiu instalar-se em Portugal após a independência da
Ucrânia, também devido aos graves problemas económicos do país, onde se
tinha instalado. Hoje, continua a exercer a sua profissão em Torres
Novas. “Tenho muitos amigos russos,
continuamos a trocar mensagens. Entendo perfeitamente a língua russa,
tudo isto é uma insensatez, e não sei como vai terminar”, desabafa. “A minha mãe adora vier em Portugal, e eu também gosto muito, um país pequeno, mas muito bonito”, adianta. Casou-se em Sintra com o marido, permaneceram algum tempo, arranjaram trabalho. Mas acabaram por regressar, até agora. “O
meu marido está na lista de mobilização, mas espero que não seja
chamado para combater. É um especialista em informática, em programação,
e julgamos que será útil nessa área”, assinala com os seus olhos azuis
muito reluzentes, e um sorriso que revela esperança. A conversa prossegue, a carrinha continua a parar nos muitos postos de controlo montados pelo exército ou milícias ucranianas.Montes
de lenhas acumulam-se, vindas de árvores derrubadas nas pequenas
florestas das proximidades. Faz frio e continua escuro. Muitos
militares, milicianos, usam lanternas de mineiro presas aos capacetes.
Outros descansam nas barricadas ou estão junto das metralhadoras
assentes em tripés. Todos fortemente armados.A
fronteira da Moldávia, outra ex-república soviética está próxima. O
território ucraniano é abandonado a pé, algumas centenas de metros
através de uma terra de ninguém. Já na Moldávia, outra carrinha aguarda
para o transporte até à cidade romena de Botosani, extremo norte da
Roménia.Aí, as fronteiras moldava e romena
estão quase juntas. Percorrem-se poucos quilómetros para chegar à
fronteira, mas a fila de carros parece não ter fim. Passa das 22:00, e a
espera será longa. O cansaço acumula-se. Por fim, o hotel, 19 horas
após a saída de Kiev, que pouco após a nossa partida foi atacada em
zonas mais próximas do centro da cidade. Botosani
estava adormecida. Finos flocos de neve receberam a comitiva. Da janela
do quarto uma pequena praça iluminada, branca, com bandeiras da
Roménia, azul amarelo e vermelho e da União Europeia (UE), as 27
estrelas, lado a lado, presas em postes de iluminação. Um país dos
Balcãs, que também ficava no outro lado da Europa, mas que se aproximou
do seu ocidente. Um desejo de muitos ucranianos, ainda com o seu destino
em suspenso, e agora marcados por uma guerra total no seu território.