Trocou o vinho pelas flores e quer quebrar estereótipos e preconceitos através da “agricultura de afetos”
21 de mar. de 2021, 22:04
— Tatiana Ourique/AO Online
É natural da ilha Terceira, de onde
saiu aos 23 anos com regressos a casa regulares. A vida profissional
obrigou-o a viver grande parte da vida fora dos Açores em cidades
como Lisboa, Braga, ou Viena d´Áustria. Licenciou-se em Engenharia
Agrícola, fez mestrado em Viticultura e Enologia e doutorou-se em
Fitotecnia. Dedicou-se durante 4 anos ao estudo das leveduras
autóctones das vinhas dos Açores e é autor de diversas publicações
científicas nessa área, onde, adianta “há muito trabalho
importante por continuar”.
Qual era a sua carreira profissional
até abraçar este projeto?
A minha atividade profissional até
aqui tinha sido sempre ligada à viticultura e/ou enologia,
essencialmente nas vertentes da investigação científica e
experimentação. No momento em que dei início a este projeto, era
professor convidado na Universidade dos Açores, onde lecionava as
cadeiras de Agroecologia, Hortofloricultura, Fruticultura e
Viticultura.
Em que consiste a “Drumonde
Ornelas – Agricultura de Design Floral”?
Chamemos-lhe projeto, embora se trate,
acima de tudo, de um modo de vida, onde a minha profissão se
confunde comigo. A ideia surgiu quando, por motivos familiares,
regressei aos Açores. Quando o meu pai deixou de poder trabalhar a
terra, decidi dar uso a alguns terrenos que, caso contrário,
estariam incultos, por não permitirem trabalho mecanizado. Logo por
aí se pode perceber que há uma forte componente afetiva na génese
deste projeto, e que lhe é transversal. É por isso que considero
que aquilo que faço é agricultura de afetos. E se assim é, as
flores são a escolha natural. Recuperámos o cultivo de algumas
espécies bastante comuns nos jardins de outrora, como as
sempre-vivas, e trabalhamos desde a sementeira até à jarra.
Acredito que a emoção de receber uma flor germina com ela, da mesma
semente. Em coerência com isso, o cultivo destas flores só poderia
ser feito, tanto quanto possível, de acordo com os princípios da
agroecologia. Sabemos que a poluição é algo inevitavelmente
associado à atividade humana. Poderá ser reduzida, evitada, mas
dificilmente eliminada por completo. No entanto, há áreas em que
não se justificam elevados níveis de poluição. E a floricultura é
uma delas. Muitas das flores que nos são comercialmente propostas, e
das quais nos habituámos a gostar, têm já muito pouco de natural.
Trata-se de variedades altamente selecionadas, visando o lucro, nas
quais características tão importantes como o aroma muitas vezes se
perderam. Todos conhecemos a desilusão de levar uma rosa ao nariz e
não cheirar a nada (na melhor das hipóteses) ou a pesticidas (na
pior delas). São normalmente flores que cresceram em estufas, com
recurso a grandes quantidades de químicos. São muitas vezes
importadas de países onde os direitos dos trabalhadores não são
respeitados. Chegam até nós de avião, em viagens poluentes, depois
de terem estado durante dias, ou semanas, em câmaras frigoríficas.
No fim deste longo processo, quando as compramos, têm um tempo de
vida muitíssimo limitado.
Ora, as flores são sempre colhidas,
compradas e/ou oferecidas com boa intenção. Elas transportam
consigo mensagens positivas, de gratidão, conforto, alegria ou
reconciliação. O que acontece é que, na maioria das vezes, a
história por detrás dessas flores não é coerente com aquilo que
queremos transmitir.
Nós sabemos que é possível cultivar
e disponibilizar flores que cresceram nos Açores, ao ar livre, de
uma forma mais ecológica, e que sejam coerentes com a nossa boa
intenção. São flores que, sem comprometerem a beleza, transportem
pureza consigo. As espécies que escolhemos cultivar podem ser, quase
todas elas, desidratadas. O processo natural de desidratação, para
além de um conjunto enorme de outras vantagens, permite aumentar
consideravelmente a durabilidade do arranjo floral. São essas as
flores que cultivamos e que integramos em propostas contemporâneas e
personalizadas, combatendo a ideia de que um arranjo de flores secas
é “a jarra com espigas que a avó tem na sala”.
Como é que comunica este projeto
pessoal e profissional?
Um dos princípios em que assenta este
projeto, veio da agroecologia: “Cooperar é melhor do que
competir”. É por isso que divulgação do nosso trabalho, e das
nossas flores, se baseia na promoção do trabalho de criativos
locais. Lançámos nas redes sociais o desafio “Fora da Jarra”
(um trocadilho com a expressão out of the box), que consiste em
propor as sempre-vivas como inspiração e/ou matéria-prima em
criações artísticas nas mais diversas áreas. O desafio, que está
aberto a todos, tem acolhido trabalhos que muito me orgulham. É
exemplo disso o quadro do pintor Luís Pedro Ribeiro, que recria uma
das suas obras mas, desta vez, sem tinta, usando apenas as cores
naturais das flores desidratadas. Outros exemplos são a participação
do filmmaker Miguel Aguiar ou a do barbeiro Délcio Mendonça. Este
último ornamentou com flores a barba do vocalista dos Fado Bravo
(André Gonçalves), num trabalho que evoca o Dia do Pai. O resultado
de outras participações, como as do designer Adolfo Mendonça, do
ceramista António Pedroso ou da escultora Bianca Mendes, serão
publicados em breve.
Porque decidiu arriscar neste novo
rumo?
Embora do ponto de vista económico
exista sempre um risco associado, eu não sinto que tenha arriscado
num novo projeto. Sinto que estou apenas a seguir a ordem natural de
algo que surgiu de uma forma espontânea, e que aceitei como modo de
estar. Há momentos em que temos a certeza de que a vida é demasiado
curta para nos darmos ao luxo de recusarmos fazer aquilo de que
realmente gostamos. Foi num desses momentos que decidi fazer o que
agora faço. Dá-me satisfação e sinto que faz sentido. Embora eu
sempre tenha gostado da minha atividade profissional, talvez me
faltasse a componente criativa, que aqui me realiza.
Como é o seu processo criativo?
Eu não tenho qualquer formação em
áreas criativas. Sou um agricultor que cultiva flores. Da mesma
forma que um horticultor poderá criar os seus próprios cozinhados a
partir dos legumes que produz, eu dou ao meu produto da terra a
utilização que deve ter: arranjos florais. Faço-o de forma
intuitiva, ao meu gosto.
Associa-se a diversas campanhas e
efemérides. Quais são as que destaca?
Sim. As flores têm um poder gigantesco
de transportar mensagens. Um simples agradecimento ou pedido de
desculpa, ganha outra dimensão quando é acompanhado de uma flor. As
flores são armas poderosas, que nos desarmam. Associar flores a
ideias que queiramos promover, pode ser uma estratégia eficaz. Há
poucos dias associamo-nos ao Dia Internacional da Mulher (DIM), numa
campanha que curiosamente excluiu as flores. Que elas são parte
importante do universo feminino, não há dúvida. Mas o DIM não
existe para vender flores. O DIM existe porque ainda é necessário.
Porque ainda há muito por fazer no que toca à igualdade de género
e ao respeito pelos direitos das mulheres. A nossa campanha baseou-se
na reinterpretação do cartaz We Can Do It! criado em 1943 durante o
esforço de guerra nos EUA e que, nos anos 80, veio a tornar-se numa
imagem icónica do empoderamento feminino. Na versão que criámos, o
emblemático lenço usado pela Rosie The Reviter, foi transformado
numa máscara. Neste momento a guerra chama-se pandemia, e as
mulheres têm mostrado, como sempre, a sua força no combate que está
a ser travado. Nesta campanha pedimos que no DIM esquecessem as
flores. Foi uma forma de alertar para o excessivo aproveitamento
comercial desse dia, que nos desfoca do seu verdadeiro sentido.
Agora vamos associar-nos ao Dia do Pai
e, curiosamente, ao contrário do que é habitual neste dia, as
flores serão trazidas para a campanha. No trabalho do fotógrafo
Jorge Fernandes, surge uma menina que enfeita a barba do pai com
sempre-vivas. Com essa imagem queremos contribuir para quebrar
estereótipos e preconceitos. As flores, são parte integrante do
universo feminino, mas devem também existir em qualquer universo,
independentemente do género. Os homens choram. Os homens gostam de
flores. E isso faz deles mais humanos, mais Homens.