Autor: Susete Rodrigues
Rosa Coutinho Cabral, realizadora, argumentista e encenadora, nasceu em Ponta Delgada e aos 14 anos foi viver para Lisboa com toda a família. As suas memórias de infância, “durante muito tempo, restringem-se à casa onde nasci”, começa por nos revelar. Explica que aquele espaço funcionou “como um grande palco familiar porque era, efetivamente, tão grande. Nós andávamos de bicicleta lá dentro”, recordando que “o meu pai quando regressava a casa, apitava, para nós termos tempo para tirar as bicicletas, os triciclos... tirar tudo, de modo a que quando ele entrasse em casa tudo estava impecável para não ter que se zangar connosco e, na realidade, nem sequer era uma pessoa que se zangasse”.
Diz que teve a sorte de nascer numa família “muito unida, muito livre. Os meus pais eram pessoas com muito apreço pela cultura e levavam-nos a sítios, como o Teatro Micaelense e o Coliseu Micaelense”. Locais que são grandes pilares da sua infância, ao qual junta ainda “o Relvão e a piscina de São Pedro”.
Esta memória de infância levou Rosa Coutinho Cabral para o espaço onde “vivo hoje em dia que é o teatro e o cinema”, porque “se a minha mãe era uma pessoa muito interessada por toda a parte visual, o meu pai era uma pessoa muito divertida, cantava muito e era muito teatreiro”.
Tinha acabado de fazer 14 anos quando foi viver para Lisboa e estranhou muito. Conta-nos que foi com um grande desgosto que foi para Lisboa: “A minha mãe estava sempre a dizer que Lisboa era fantástica, mas não queria ir, porque estava a principiar a minha adolescência e queria estar aqui com os meus amigos, com quem começava a criar as minhas afinidades eletivas (...)”. Sentiu-se muito só quando chegou a Lisboa e “a casa para onde fomos foi uma desilusão, porque era muito pequena”. Ora, a mãe, para tentar contrariar a desilusão, “costumava dizer que ‘a casa é um bocadinho pequena, mas tem um jardim lindo aqui ao pé”, o Jardim da Estrela. De facto, para Rosa Coutinho Cabral, e tal como nos contou o seu irmão João Cabral (ator e encenador) “o Jardim da Estrela foi um refúgio”. Um lugar onde passava muito tempo, sobretudo “com os meus dois irmãos mais novos, o João e o António José”.
A cineasta estudou no Liceu Maria Amália, “um liceu feminino e conservador e foi também outra desilusão (...). A sorte que tive foi que a minha mãe era professora lá e quando tentavam exceder-se, ela nunca autorizava, dizia sempre que tinha liberdade para fazer o que queria”.
Revela que “era muito solitária, não era muito comunicativa, era muito tímida, passava muito tempo em casa a ler, a escrever, a ensaiar as minhas incursões na escrita”.
Entretanto, veio o 25 de Abril e, “embora não fosse politizada, todo aquele período foi o mais feliz da minha vida, politicamente falando. Passei os dias na rua, a celebrar o que estava a acontecer e a perceber também a alegria daqueles que eram mais velhos e a compreender a grande necessidade da mudança política do país”.
Perante isso, decidiu ir para Sociologia, “alterei o meu percurso e fui para o Instituto de Ciências Sociais e Políticas, e nesse verão fui para Vilar dos Mouros, com os meus irmãos, para um festival de música e conheci uma pessoa que me falou na escola de cinema. Então candidatei-me e acabo por fazer, ao mesmo tempo, a escola de cinema e a Sociologia, e a terminar ambos os cursos”.
Disse que a sua primeira experiência no cinema foi muito triste porque “tinha acabado de sair da escola, recebi um subsídio, fui fazer aquele filme e a equipa que me acompanhava, não percebeu o que eu queria”. Explicou-nos que “queria trabalhar de uma forma mais improvisada, intuitiva, de experimentar e eles não se deram bem com isso, porque queriam um guião. De alguma maneira, eram os meus melhores amigos na altura - já disse isso várias vezes - considerei-me absolutamente traída por eles”.
Esta situação deixou-lhe marcas e pensou em nunca mais fazer cinema, mas “gostava tanto daquela experiência que continuei a fazer cinema. Pouco a pouco, fui conseguindo consolidar a forma como realmente entendo o cinema”, acrescentando que o cinema não se “rege por leis, é uma experiência estética, criativa, política, que cada um deve fazer como melhor entende. É isso que quero fazer, é experimentar a fazer cinema de cada vez que faço um filme, não quero ter nenhum guião pré-estabelecido. Quero permitir-me descobrir no contacto com as pessoas e com o próprio processo cinematográfico, razão pela qual os meus filmes agora, quase sempre, se chamam Ensaios Cinematográficos”.
Questionada se sentiu algum tipo de discriminação por ser uma cineasta mulher, Rosa Coutinho Cabral, adianta que aconteceu “logo no primeiro filme onde trabalhei. Era para ser assistente de câmara porque a minha vontade era trabalhar em fotografia e em câmara, e o diretor de fotografia que estava na altura, disse logo: ‘A Rosa não, porque é uma mulher, não vai conseguir carregar tripés’. Achavam que não podia fazer e passei para a realização (…)”.
A seu ver, “há sempre uma maior desconfiança, mas também acho que isso depende muito de nós, mulheres. Penso que as mulheres não se podem deixar perturbar com este olhar de uma sociedade patriarcal, conservadora e têm que se impor, que se defender (…)”, afirmou frisando que “não sou feminista, acho que há homens, há mulheres, há as suas diferenças, apoquenta-me muito mais que hajam pobres e ricos do que hajam diferenças entre homens e mulheres. (…) Certo é que ainda morrem muitas mulheres hoje em dia, e nós temos que lutar por elas e a maneira de lutar por elas é não deixar que nos ponham o pé em cima”, frisa.
Do cinema para o teatro, quisemos saber como surgiu a encenação na sua vida. Rosa Coutinho Cabral salienta que sempre gostou de teatro, e devo ter entrado no teatro, sobretudo, devido ao meu irmão João. Comecei a interessar-me pelo trabalho que ele fazia e um dia quis fazer uma peça. Convidei-o e a primeira peça que fiz, curiosamente, foi aqui em São Miguel, o ‘Principezinho’ há muitos, muitos anos. Depois veio a seguinte - talvez a mais importante - ‘3 Vidas de Sucesso’”. Refere que “tem sido uma vida dividida entre teatro, cinema, instalações e exposição. Sobretudo, desde 2011 que este tipo de atividade cruzada foi quase constante”, referiu.
O seu envolvimento com o POP-Festival acontece através da amizade que tem com Tiago Melo Bento e “esta amizade levou-me a aproximar-me da Corredor. Também o Tiago já trabalhou muitas vezes comigo, portanto, temos uma afinidade muito grande”.
Por outro lado, “o Tiago convidou o João a realizar um workshop e vim com ele. Na segunda edição estava cá e continuei a ser uma amiga do Festival. Nesta terceira edição, é com muito orgulho que eu e o João fazemos parte como encenadores da peça ‘Atos Únicos’”, disse para destacar que o “POP-Festival é uma iniciativa extraordinária. Fazia muita falta criar aqui (São Miguel) um festival de teatro, trazer outras experiências teatrais”.
Sobre sonhos, Rosa Coutinho Cabral, afirma que “não tenho sonhos burgueses de espécie nenhuma. Gosto de fazer coisas como se fosse um carpinteiro ou como se fosse um escultor, em que as mãos só não estão lá, mas estão lá. Tenho uma vontade e um desejo de fazer coisas que intervenham no real”, afirmou, fazendo questão de terminar referindo que “neste momento em que a viragem do mundo é cada vez mais para a extrema-direita, neste momento em que se nós, mulheres e pessoas, não agirmos, corremos o risco de voltar ao princípio do Século XX e aos seus fascismos”.
Por isso “acho que não tenho sonhos. Tenho uma grande vontade e um grande desejo de lutar contra isso. Se aquilo que quero fazer servir para lutar contra isso, já me sinto por bem entregue neste mundo”.