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“Tenho orgulho em ser surda”: como a adversidade se torna numa missão de vida

Ema Gonçalves. A fundadora da Associação de Surdos da Ilha de São Miguel perdeu a audição aos seis anos, mas transformou a adversidade numa missão de vida: formar gerações, preservar a variante açoriana da Língua Gestual Portuguesa e criar espaços de encontro e apoio para surdos



Autor: Ana Carvalho Melo

Natural da Madalena do Pico, Ema Gonçalves perdeu a audição aos seis anos. Ao longo do seu percurso de vida, formou gerações e defendeu a identidade cultural dos surdos açorianos, através de um caminho marcado pela resiliência, orgulho e serviço. Como diz com convicção: “Eu tenho orgulho em ser surda.”

“Eu nasci ouvinte”, começou por dizer na entrevista, relembrando uma infância simples na ilha Montanha, entre brincadeiras e tarefas na quinta com os irmãos e a irmã.
Aos seis anos, um dia de sol intenso terminou com febres altas e vómitos. Esta situação levou a mãe, primeiro, a levá-la ao médico no Pico, depois ao Faial, onde foi diagnosticada com meningite. Após um mês de hospitalização, recebeu alta sem que ninguém percebesse que tinha perdido a audição. “Ninguém sabia que eu era surda… Eu fui para casa toda feliz porque ia para perto da minha família e da minha madrinha, que era quase uma segunda mãe. Até que um dia me disseram para ir comprar leite e, quando eu ia pelo caminho, aparece um camião que apitou várias vezes atrás de mim e eu não ouvi”, conta.

“Eu não me lembro de quando perdi a audição”, refere, contando que regressou ao Hospital da Horta, onde foi confirmada a surdez profunda.


“Voltei para o Pico e, em outubro, comecei a escola super feliz. Na escola, eu não olhava para a professora, estava muito focada naquilo que fazia, e começaram a perceber que seria melhor ir para São Miguel, onde havia a única escola para surdos, o Centro de Educação Especial nos Açores”, recorda.

Com apenas sete anos, Ema Gonçalves deixou a ilha natal para estudar no Centro de Educação Especial para Surdos, em São Miguel, fundado em 1968, e onde havia surdos de todas as ilhas: de São Jorge, do Faial, da Graciosa, da Terceira e de Santa Maria, num tempo em que as viagens eram feitas de barco no Ponta Delgada. Era a primeira aluna do Pico a fazê-lo. No início, estranhou a comunicação gestual dos outros meninos: “Perguntei à minha mãe porque é que aqueles meninos mexiam tanto as mãos… Ela disse-me: ‘Eles são iguais a ti.’”

Esse momento marcou o início de uma ligação vitalícia à comunidade surda.

A adolescência foi marcada por mudanças bruscas. Perdeu a mãe aos 13 anos e regressou ao Pico, onde sentiu o peso das responsabilidades domésticas. Foi então que a madrinha interveio para que pudesse voltar a São Miguel e continuar a estudar ou fazer outros trabalhos.

“A minha madrinha perguntou: ‘O que é que andas aqui a fazer? Tens 14 anos e vais ficar aqui?’ E eu acabei por responder que sim. Mas a minha madrinha recusou-se a aceitar isto, começou com telefonemas para São Miguel a perguntar o que eu queria vir aprender. E, com 14 anos, era uma miúda, eu acabei por regressar a São Miguel.”

No Centro de Educação Especial dos Açores aprendeu a costurar e conheceu uma professora que veio da América que lhe ensinou a Língua de Sinais Americana (ASL). “Comecei a comunicar com ela e a ficar muito curiosa com a língua dela e os alunos dela”, conta.

“Com 18 anos digo adeus ao convento e decido que quero ser autónoma”, explica, revelando que, ao mesmo tempo, trabalhava e estudava à noite, completando o ensino básico e secundário.

Incentivada pela professora americana, foi para Lisboa tirar o curso de formadores de Língua Gestual Portuguesa (LGP).

“Foi assim um curso muito rápido, porque, como sou surda, adquiri esses conhecimentos muito rapidamente. De repente nós estávamos ali a gesticular, a comunicar… Era uma ponte de comunicação, havia uma ligação”, conta, afirmando: “Até me estou a arrepiar com isto tudo.”

Aos 23 anos, regressa e começa a trabalhar na Escola de Educação Especial de Ponta Delgada, como formadora de LGP, defendendo o uso da variante açoriana e resistindo à substituição por modelos vindos de Portugal continental.

Determinada a profissionalizar-se, licenciou-se e fez mestrado na Universidade Católica Portuguesa, conciliando estudos com trabalho e viagens ao continente.

“No final, a minha experiência não interessava e teria de recomeçar a minha carreira. Então decidi continuar como formadora de LGP, apesar de ter a formação como professora”, revela.

Hoje considera que “foi muito bom” ter vindo para São Miguel sozinha e em tenra idade, porque todo o seu esforço lhe garantiu um “mundo a que não teria acesso se tivesse ficado no Pico”.

Em 1993, inspirada pelo que viu em Lisboa, fundou a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel. “Eu não sabia muito bem o que estava a fazer, sou sincera… Mas sabia que queria criar um espaço para nós”, conta. Começou numa pequena sala no Centro Educação Especial dos Açores, com festas e encontros. “Foi um momento em que consegui expandir a LGP em São Miguel”, realça.

Aos poucos, conseguiu intérpretes, financiamento e novas instalações. Três décadas depois, a associação é um ponto de encontro e apoio, oferecendo projetos de agricultura, costura, formação, desporto e publicações.

“Foi uma luta muito grande, mas temos conseguido os nossos objetivos”, refere, explicando que, cada vez mais, recebem pessoas nas atividades que promovem.
Comparando a sua experiência com a realidade atual, Ema Gonçalves vê mudanças positivas na sociedade: “Hoje em dia já existe uma integração maior… No meu tempo chamavam-nos surdo-mudo e isso revoltava-me.” Mas considera que ainda há desafios, como a dependência excessiva de implantes cocleares e a falta de estruturas para idosos surdos. O seu grande sonho agora é criar um lar para os mais velhos, aproveitando parte do antigo edifício na Rua de Lisboa da Escola de Educação Especial dos Açores: “Temos estado a empoderar os jovens para que possam tomar conta desta associação. Mas temos estado a lutar para que o edifício da antiga Escola de Educação Especial dos Açores, na Rua de Lisboa, seja transformado num lar residencial ou num centro de dia para surdos”, afirma, questionando qual poderá ser o futuro dos surdos à medida que envelhecem e necessitam de apoio.