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“Tenho muitas recordações dos sons africanos e sobretudo das pessoas”

Iva Matos. Foi em Angola que viveu até aos 16 anos, altura em que a mãe decidiu voltar a Portugal para que não fosse para a tropa. Fez o seu percurso académico em Lisboa. Com o regresso da mãe à ilha de São Jorge, os Açores passaram a fazer parte da sua vida, afirmando que foi por amor que escolheu São Miguel



Autor: Susete Rodrigues

Iva Matos, diretora da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, nasceu no sul de Angola, ao pé da fronteira com a Namíbia. Diz que nasceu “no meio do mato” e tem muitas recordações “daquela paisagem, dos sons africanos, sobretudo, das pessoas. Tenho muitas recordações das pessoas, da sua forma de viver. É uma realidade que me marca muito”.

Filha de mãe açoriana, da ilha de São Jorge, Iva Matos, conta-nos que o pai “era 30 anos mais velho que a mãe”. Conheceram-se porque a mãe foi para Angola com a sua família. “A minha mãe foi a única que estudou - de uma geração em que as mulheres não estudavam -, mas ela foi para o Faial estudar. Depois levaram-na para Angola para se juntar a dois irmãos mais velhos e porque tinha um namorado que a família achava pouco recomendável”. 

A mãe, apesar de ainda não ter o curso podia lecionar e inscreveu-se para tal numa repartição pública. Por sua vez, “o meu pai andava à procura de uma professora para fundar uma escola e a minha mãe foi para essa escola. Apaixonaram-se, casaram e nasceram dois filhos, o meu irmão e eu. Mas o meu pai já tinha cinco filhos, praticamente da idade da minha mãe”. Mesmo com a diferença de idades entre irmãos, “de raça, de viver, de cultura, sempre nos demos muito bem todos”. Sobre a família do pai diz-nos que “éramos muito ligados, e era uma família pequena, mas muito conhecida em Angola e com alguma responsabilidade, principalmente ao nível da saúde pública e de questões sociais. Também era uma família de esquerda, de consciência da necessidade da luta pela independência de Angola, pelo fim da guerra colonial”.

Iva Matos ficou órfã aos 10 anos, “no meio da guerra civil em Angola”. Recorda que “nos anos 80, a guerra civil em Angola foi muito intensa. O país estava invadido pela África do Sul e existia o risco de eu ser mobilizada para as forças armadas angolanas, a partir dos 16 anos”, acrescentando que “o meu irmão mais velho já lá estava e o meu outro irmão estava em Portugal a passar férias quando a Lei saiu”. Foi nessa altura que “a minha mãe decidiu que eu não iria para a tropa e que viríamos para Portugal”. De fora dessa escolha ficaram, num primeiro momento, os Açores, porque “em São Jorge, onde estava o meu avô materno e a família da minha mãe, na altura, não havia o ensino secundário. Se fôssemos para São Jorge, a minha mãe iria ficar sem os filhos ao pé de si”, pois teriam de sair da ilha para prosseguirem os seus estudos. “Então, estivemos cerca de quatro anos em Setúbal, onde eu tinha uma irmã mais velha a viver. Na ocasião, a minha mãe conseguiu colocação como professora em Setúbal. Depois entrei para a universidade”. Entretanto, “a minha mãe refez a sua vida com um amigo de infância da ilha de São Jorge e tive um padrasto magnífico que recordo com enorme reconhecimento e amizade. A minha mãe voltou para São Jorge”. E foi entre as ilhas do Grupo Central, nomeadamente São Jorge e Terceira que Iva Matos passou a sua “juventude universitária, onde tenho grandes amigos. Gosto muito da ilha Terceira e daquela vivência do Grupo Central”.

Iva Matos licenciou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, com especialização em Ciências Documentais, opção de biblioteca e documentação. Antes da escolha pela Filosofia, ainda andou pelo curso de Direito. Como tinha uma bolsa de estudo e “tinha de compensar a isenção de propinas com trabalho, deram-me trabalho na biblioteca. Comecei a ver ali um futuro”.

A sua vinda para a ilha de São Miguel acontece porque abriu uma pós-graduação em biblioteca e documentação na Universidade dos Açores. Na altura “a Dr.ª Graça Chorão é que organizou esta pós-graduação. Candidatei-me, porque já tinha uma tia que tinha sido bibliotecária em Angola”, afirmou, lembrando que quando trabalhou na biblioteca da universidade “percebi o que era o trabalho numa biblioteca por dentro. Este é que foi o impulso, foi o facto de ter trabalhado numa biblioteca e obviamente gostar de ler, ser curiosa e de estar sempre à procura de informação”. Este seu gosto pela leitura e por procurar saber mais, “tem muito a ver com o exemplo da minha família paterna. Claro que uma professora é um marco na vida de uma criança e sempre tive a presença do conhecimento e o gosto pelo saber em casa, mas a minha família paterna é que tem esta tradição da leitura, dos livros”.

Confessa que “São Miguel ficava um pouco fora de rota, porque a minha vida passava pela Terceira, São Jorge, Lisboa, mas tinha amigos aqui também. Depois conheci o meu marido e fiquei aqui por amor”.

Está na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada há mais de 20 anos, mas antes, lecionou no ensino regular e profissional. Refere, com alguma nostalgia, que a experiência no ensino “foi muito gratificante. Comecei a dar aulas nas Velas de São Jorge, e em São Miguel, fui professora nos Arrifes e em Rabo de Peixe, no 3º ciclo do ensino regular. Também dei aulas na Escola Profissional do Sindicato de Escritório e Comércio, e foi muito bom, porque os jovens nessa altura já têm uma ideia do que será o seu futuro. É muito bom dar aulas”.

Questionada sobre o que é preciso para se ser bibliotecária, Iva Matos responde que “ter cultura geral é muito importante, estar sempre à procura de saber e perceber que uma biblioteca ou um arquivo é uma fonte inesgotável de conhecimento e informação. Ter esta consciência de que trabalhamos num grande ‘armazém’ de conteúdos de informação e saber”. Depois “desmistificar a ideia de que numa biblioteca só se lê, pois, temos de ter o empenho pela organização e perceber que os conteúdos são para outros e, por isso, temos de os tornar acessíveis e fazer com que as pessoas sejam autónomas ao procurarem o nosso produto”. Se o livro digital veio ‘abafar’ o livro em papel, Iva Matos diz que não. Na sua opinião “é ótimo existir a possibilidade de ler em vários suportes. Por exemplo, quando surgiu a televisão, diziam que era o fim da rádio. Penso que existe lugar para todos, e é muito bom ter acesso a mais oferta pois isso aumenta a possibilidade de leitura”.

Nos dias de hoje, ir a uma biblioteca não é só para procurar um livro ou uma informação, é também um local para troca de ideias, para participar em atividades, oficinas, ver uma exposição. Para a diretora da BPARPD, “uma biblioteca, se é pública, tem de ser para todos, desde as pessoas que vivem na rua até ao professor universitário. Uma biblioteca é um lugar de encontro intergeracional, um lugar de encontro entre comunidades e, por isso, temos de ter, não só a oferta base - que é a documentação cujas referências estão em bases de dados, alguma já digitalizada para ser acedida fora das instalações – como também atividades, para um público de todas as idades. Iva Matos recorda que “antes de ser diretora, fiz parte do Serviço Educativo cuja equipa tem muita experiência, com muita formação. Temos 19 oficinas de promoção do livro e da leitura para crianças. Temos também atividades para os jovens, temos as exposições, abrimos recentemente um ‘lugar de fala’, onde se promovem discussões diversas, sobre vários assuntos, temos exposições”.

Com “tanta coisa para fazer”, Iva Matos gostava de ver em marcha um projeto de biblioteca itinerante. “Seria uma carrinha que iria levar os livros para vários sítios da ilha, porque na nossa perspetiva não é só importante que as pessoas venham à biblioteca, também é importante a biblioteca ir ao encontro das pessoas e, era também uma forma de levarmos, não só livro como também, um ou outro documento de arquivo”. Também gostava de dar continuidade a um projeto que a biblioteca desenvolveu no hospital de Ponta Delgada, o ‘Vitamina Livro’ em que “íamos à Pediatria fazer a ‘Hora de Conto’, bem como um outro em que íamos às escolas. Existiam turmas que não tinham manuais escolares e aprenderam com os nossos livros, depois vinham cá, à biblioteca, com as famílias buscar mais livros”. Projetos que decerto iremos ver retomados e/ou implementados num futuro próximo.