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“Só temos uma vida para viver e devemos desfrutar daquilo que fazemos”

Mariana Cabral. Licenciada em jornalismo, o futebol foi sempre uma paixão, até que decidiu que seria este o seu caminho: o de treinadora. Trilhando uma carreira de sucesso no futebol em Portugal, este ano, Mariana abraçou um novo desafio que a levou aos EUA e ao Utah Royals, uma experiência que diz ser “excecional, muito melhor do que imaginaria”


Autor: Susete Rodrigues

Mariana Cabral teve uma infância muito feliz e enriquecedora. A família sempre a incentivou a “fazer o que quisesse, tanto na vertente desportiva como nas restantes áreas. E tenho memórias muito felizes da minha vida escolar no Colégio São Francisco Xavier, na Escola Roberto Ivens e no Liceu Antero de Quental, onde tive professoras excecionais”, conta-nos, frisando que a “educação, tanto em casa, como no ambiente escolar, abre-nos as portas do mundo”.

Não sabe exatamente quando surgiu o seu gosto pelo desporto, “mas sei que há várias fotografias minhas desde tenra idade com uma bola de futebol, provavelmente incentivada pelo meu pai, que ia muitas vezes jogar com os amigos no Vitória Clube do Pico da Pedra e eu ia sempre atrás com a minha bola para dar uns pontapés”.

Mariana Cabral escolheu ir para Lisboa, tirar jornalismo. Diz-nos que “queria conhecer mais do que conhecia e aprender a ser independente fora do contexto familiar de uma ilha que acaba por ser pequena quando somos jovens e temos muitas ideias para a nossa vida”. Já a escolha por jornalismo deveu-se porque “sempre cresci muito ligada às letras: obviamente o meu pai era jornalista e via-o sempre a preparar os seus programas em casa”, mas a sua mãe também foi uma grande influência “por ser professora de inglês e me incentivar a ler imenso desde muito nova, tal como a minha tia Paulinha com quem eu adorava ir às feiras do livro em Ponta Delgada”, acrescentando que “durante as férias também via a minha tia Beatriz a ler religiosamente todas as noites um livro, normalmente policiais, e também fiquei com esse bichinho até hoje”. 

É com humor que nos conta como foi a reação do pai ao querer ir para jornalismo: “O meu pai disse logo para eu mudar de ideias, que era uma profissão não só extremamente difícil, mas também mal remunerada”. É também com risos que nos diz que “hoje tenho uma profissão que também é dura, mas pelo menos é muito mais bem paga”. “Obviamente quando deixei de ser jornalista e passei a ser treinadora a tempo inteiro - porque antes já era em ‘part time’ - os meus pais ficaram reticentes, porque eu já tinha um emprego fixo no jornal Expresso, onde trabalhava há uma década, mas felizmente a minha família sempre me apoiou em tudo e estou muito grata por esse conforto”, sublinhando que “só temos uma vida para viver e devemos desfrutar daquilo que fazemos”.

Na área do jornalismo Mariana Cabral fez um estágio no jornal A Bola. Mas “acabei por perceber que não era bem aquele tipo de notícias que eu gostava de escrever. Percebi que gostava de ter tempo para escrever histórias mais fora da caixa ou para fazer entrevistas, algo que consegui fazer no Expresso”. Assim, quando terminou a faculdade, “tive um estágio na revista do Expresso e quando o estágio terminou acabei por ser contratada, inicialmente para a secção multimédia, mas posteriormente no desporto, que era a minha preferência”.

Questionada sobre os motivos que a levaram a deixar o jornalismo e seguir uma carreira no futebol, Mariana Cabral, começa por dizer que “gostei muito de todos os anos enquanto jornalista, nos quais entrevistei grandes referências do futebol masculino e feminino (por exemplo, Ruben Amorim, José Mourinho, Sarina Wiegman, etc.) e tive a oportunidade de cobrir grandes torneios, como foi o caso do Euro 2016 que Portugal ganhou”. Recorda que esteve mais de um mês em França e “foi uma experiência inolvidável, e pela qual acabei por receber um prémio da Associação de Jornalistas Desportivos”, o que a deixou muito honrada, “não tanto pelo prémio propriamente dito mas porque o recebi ao lado de dois grandes açorianos: o meu pai e o Pauleta”, disse com bom humor. Mas, “o futebol sempre foi a minha grande paixão, e neste caso continuei no meio do futebol, mas apenas em funções diferentes. Foi algo que aconteceu naturalmente porque sempre tive um interesse muito grande pelo treino e pelo lado tático do jogo, e foi isso que me levou a ser treinadora”. A sua maior referência no futebol foi Helena Costa, que “atualmente é diretora desportiva do futebol masculino do Estoril Praia.  (...) Ela incentivou-me a tirar o curso de treinadora e sempre foi uma mentora para mim, sendo que continua a sê-lo ainda hoje, além de uma grande amiga”. 

Ser-se treinadora de futebol não é fácil porque “ainda não é uma profissão muito comum para uma mulher em Portugal, pelo que havia sempre muitos comentários e comportamentos sexistas, mesmo que por vezes involuntariamente. (...) É um cargo que exige um rendimento de alta performance porque precisamos de estar sempre prontos para lidar com questões multidisciplinares, somos uma espécie de gestores de pessoas (...)”, afirma. E claro que pisar um relvado “é o melhor sítio do mundo, por isso entro sempre com um sorriso, embora às vezes saia de cara cerrada (risos). E entro sempre com a consciência de que para eu ser treinadora de futebol profissional, houve muita gente antes de mim que teve de lutar muito para que o futebol feminino crescesse e fosse respeitado, por isso faz parte de mim honrar essas pessoas e continuar essa luta”.

Enquanto treinadora, Mariana Cabral começou nas escolas femininas de formação do 1º Dezembro, em Sintra. Esteve nas escolas de formação masculina do Benfica. No sub-17 feminino do Estoril Praia, “até entrar no Sporting, enquanto treinadora das sub-19 e coordenadora técnica de toda a formação”. No Sporting “acabei por subir para a equipa B, que foi campeã nacional da 2ª divisão sénior apenas com jovens sub-21 e foi nessa altura que acabei por ser convidada para a equipa A”. 

Salienta que os melhores momentos passam por “ver a nossa equipa a jogar bem, porque é isso que me dá mais prazer no futebol, assim como ver as jogadoras a serem felizes, particularmente as jovens que acompanhei no processo formativo e que depois chegam a profissionais, às seleções nacionais e a grandes clubes europeus”. (...) Já o pior momento foi perder na qualificação da Liga dos Campeões, na época passada, contra o Real Madrid, porque “senti que poderíamos ter ido mais longe se as condições que tivemos na altura fossem outras” (...). 

Atualmente está nos EUA como treinadora-adjunta nos Utah Royals, uma experiência “excecional, muito melhor do que imaginaria, não só em termos desportivos mas particularmente em termos sociais, porque a vivência cultural é totalmente diferente”, disse, lembrando que “quando me demiti do Sporting senti que estava a perder a paixão pelo que fazia, porque não partilhava os objetivos e os valores do clube para o futebol feminino, e só queria voltar a desfrutar do jogo”. Teve propostas de vários clubes de  países muito diferentes, mas acabou por escolher os EUA. Confessa que teve algumas reticências “após a eleição do novo presidente americano, mas acabei por aceitar o convite na mesma, por sentir que o clube queria muito que eu viesse (...)”.

Sente falta dos pais e de “toda a minha família, claro, particularmente da minha avó, que agora teve de aprender a ligar com o WhatsApp, o que não é fácil, mas ela consegue”, disse entre risos, para frisar que “quando tenho saudades, lembro-me sempre dela, que é uma mulher incrível. Quando era nova, a única coisa que ela queria era estudar, mas a mãe não deixou. (...) Sei que hoje faço muitas das coisas que ela gostaria de ter feito e não pôde (...)”. 

Neste seu percurso, nem sempre fácil, com alegrias e alguns dissabores, Mariana Cabral é uma mulher “realizada à data de hoje, porque muito do que fiz se calhar não imaginava de todo há um, dois ou três anos, muito menos há 10 anos, mas sinto que ainda há muito por realizar”, como por exemplo “voltar a São Miguel e desfrutar da vida no campo. E, quem sabe, poder abrir uma escola de futebol na ilha, porque voltar a treinar na formação é um objetivo que tenho, porque ali não estamos apenas focados no rendimento, mas na formação de seres humanos para o futuro”.