Sexo violento deixou jovem de 16 anos em risco de vida. Tribunal não viu violação
Hoje 09:00
— Fernanda Câncio/Diário de Notícias
A estudante Maria (chamemos-lhe assim; o DN alterou os nomes de todos os
intervenientes), de 16 anos, não conhecia, até à noite de 16 de março
de 2024, o cantoneiro Filipe, de 25 anos. Foi nesse sábado que, numa
ilha dos Açores, uma noitada com amigos comuns, muita bebida e consumo
de canábis, os juntou. A noitada, que passou por uma discoteca,
acabaria, já após as sete da manhã do dia seguinte, na casa de Filipe, e
naquilo que, segundo a acusação do Ministério Público (MP), constituiu
uma violação agravada. Crime do qual, em acórdão de 14 de julho de 2025,
por dois votos contra um, o Tribunal Criminal de Angra do Heroísmo
absolveu Filipe, ordenando que este, desde 30 de março de 2024 em prisão
preventiva, fosse de imediato posto em liberdade.Os dois juízes que
assim decidiram (e de cuja decisão o MP recorreu para o Tribunal da
Relação) consideraram que, malgrado Maria ter sofrido, em consequência
da relação sexual com Filipe, uma laceração “em toda a extensão do fundo
do saco vaginal posterior”, causando-lhe “hemorragia vaginal (…) em
quantidade abundante” — laceração essa que, de acordo a perita forense
ouvida em julgamento, a colocou em perigo de vida (foi operada de
urgência) e só é passível de ocorrer quando haja “uma penetração muito
profunda e violenta”, porque “numa relação sexual normal isto não
acontece” — tal não indicia necessariamente uma relação sexual não
consentida. Para estes dois magistrados (Miguel Ângelo França,
relator, e Adelaide Lima), a versão de Maria, que sustentou, quando foi
ouvida pelas autoridades (em declarações para memória futura, em 2024, e
no julgamento, já em 2025), ter dito várias vezes a Filipe que não
queria ter relações sexuais — só quereria “dar beijos e amassos” — e
resistido a que este lhe despisse as calças, acabando por não conseguir
evitá-lo, não se afigurou credível.“Apesar da existência de relação
sexual de cópula”, diz o acórdão, ao qual o DN teve acesso, não se
demonstrou “qualquer atuação com caráter de constrangimento por parte do
arguido”. Para provar a existência de tal constrangimento — ou
seja, a violação — argumentam os dois juízes, não basta saber que “houve
o emprego de força na relação sexual em causa” porque, consideram, não
significa que “tal emprego de força não tenha sido consentido”. Seria,
“sobretudo, necessária a prova de que a Assistente [Maria] disse ou
sinalizou por qualquer forma que não pretendia que o arguido lhe
introduzisse o pénis na vagina, o que não logrou fazer-se com o grau de
certeza exigido pelo processo penal português”.Em completo desacordo
está a terceira juíza do coletivo, Filomena Bernardo, que num longo (e
indignado) voto de vencida explana as suas razões para considerar que
Maria foi mesmo vítima de um crime de violação agravada, que Filipe
deveria ser condenado a seis anos e seis meses de prisão efetiva e a
pagar a indemnização pedida (12 mil euros, que a magistrada considera
pecar por exígua) e que, ao contrário do que sustentam os colegas, os
depoimentos de Maria lhe merecem “absoluta credibilidade”. “Quer nas
suas declarações para memória futura, quer nos esclarecimentos em sala
de audiência”, escreve esta magistrada, Maria “diz sempre o mesmo. (…)
Sempre disse ‘eu quis e fiz os beijos e os amassos, a partir daí não
queria mais e disse-lhe. Ele forçou a penetração e foi o que foi’”
(expressão usada por Maria numa SMS enviada a um integrante do grupo
daquela noite).Aliás, comenta Filomena Bernardo, que tenha, nesses
primeiros momentos, negado ter sido violada e certificado ter-se tratado
de uma relação consentida “só demonstra a autêntica sinceridade desta
miúda com o seu relato logo que está no hospital, nas SMS que manda aos
‘amigos’”. Porque, prossegue a magistrada, “ela está absolutamente
convencida de que não foi violada, pois para a sua cabeça a violação tem
que ter briga, agressão física, pancada, obrigar a fazer totalmente
contra a sua vontade (…). Mas para ela e no caso que viveu (que tinha
acabado de viver, pois apenas estava a escassas horas do que que tinha
passado), isto não aconteceu. Porquê? Porque, estava a trocar amassos
com um ‘amigo’ (pseudo). Simplesmente não compreende ainda naquele
momento que o que viveu em casa do arguido Filipe foi um ato forçado e
totalmente contra a sua vontade.”“Continuou na onda porque não se conseguiu opor”Façamos
aqui um parêntesis para esclarecer algumas questões jurídico-legais.
Apesar de menor, Maria tem, com 16 anos, aquilo a que se costuma
denominar de idade para consentir. É-lhe reconhecida, porque no sistema
legal português a fronteira é fixada nos 14 anos, capacidade de decidir
se quer ou não ter relações sexuais; um adulto que se relacione
sexualmente com ela não comete, só por esse facto, um crime.Quanto
ao crime de violação, previsto no artigo 164º do Código Penal, e que tem
sido nos últimos 10 anos alvo de várias alterações (a última das quais
em 2025, para o transformar num crime público — querendo dizer que
qualquer pessoa, e não apenas a vítima, o poderá denunciar), está
tipificado como o ato de constranger outra pessoa a “sofrer ou a
praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
sofrer ou a praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes
do corpo ou objetos”.Caso tal constrangimento ocorra por meio de
“violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado
inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”, a pena prevista é
de três a 10 anos. Uma moldura penal bastante mais baixa, de um a
seis anos (menor, por exemplo, que a prevista para o furto qualificado
por meio de arrombamento, escalamento ou chaves falsas, que é de dois a
oito anos) aplica-se quando o constrangimento aos atos sexuais descritos
ocorra, “contra a vontade cognoscível da vítima”, por “qualquer meio”
que não os anteriormente elencados.A acusação a Filipe, deduzida em
setembro de 2024, é pelo crime de violação com a moldura penal menor
(com constrangimento “não violento”). Porém agravada pela existência de
ofensa à integridade física grave, representada pelo risco de vida que
Maria correu pelo rasgamento do canal vaginal. A pena possível é assim
aumentada em 50% nos seus limites mínimo e máximo, passando para de ano e
meio a nove anos de prisão. Voltemos então ao domingo 17 de março
de 2024. Pelas sete da manhã, o grupo, que inclui, além de Filipe e
Maria, uma amiga íntima desta (Ilda, de 17 anos), e mais três pessoas
cuja idade é mais próxima da de Filipe, está a sair de uma discoteca.
Maria sente-se mal e vomita (às 11H10, já no hospital, registava ainda
uma taxa de 0,520 gramas de álcool por litro de sangue) e a seguir, com
os outros, dirige-se, no carro de Filipe, para a casa deste. Uma vez aí
chegados, fica com Filipe na sala, no sofá, enquanto os outros vão para a
cozinha, que fica ao lado (a porta entre as duas divisões foi fechada).É
aí, nesse sofá, que ocorre a relação sexual. No seu relato ao tribunal
(reproduzido no voto de vencida da juíza Bernardo), Maria afirma não ter
conseguido impedi-la — “Disse que não queria e ele diz se não querias
porque deixaste chegar àquele ponto (…) Durante o sexo, foi-se deitando e
disse que não queria mas ele não parou e penetrou-a, ela tentou
empurrá-lo mas ele continuava sempre, ela não pediu ajuda mas continuou
na onda porque não se conseguiu opor”. Questionada pela defesa de
Filipe sobre o motivo pelo qual não pediu ajuda ou fugiu, responde que
não lhe ocorreu, que tentou afastá-lo mas não conseguiu porque ele
estava sobre ela e “não pensou que ele a obrigasse ter relações sexuais
alcoolizada”.Sentindo dor, pediu para parar, tendo Filipe insistindo
em continuar — “Eu faço devagar” — e ela respondido “mesmo assim não
quero”, e, virando-se, vestiu as calças e adormeceu. Quando acordou,
conta, percebeu que estava a deitar sangue, chamou a amiga Ilda e esta
pediu à mãe, que a ia buscar a casa do Filipe, para a levar ao hospital.Já
Filipe, nas suas declarações, assevera que não sabia a idade de Maria
nem se ela tinha bebido, e que a relação sexual, que descreve com
pormenor, foi consensual. Afirmou também que acha que ela pediu para
parar porque “tinha tido já o orgasmo” e que antes disso Maria nunca lhe
dissera para parar. Afiança ainda que quando percebeu que ela estava a
deitar sangue a aconselhou a ir ao hospital (não foi, no entanto, ele
que lá a transportou, nem a acompanhou).“Ela não queria, mas depois foi”No
essencial, a decisão do tribunal parece ter acolhido a versão do
arguido. Se não dá como verdadeira a garantia deste de que não sabia a
idade de Maria, aceita que não a soubesse embriagada. E não considera
provado que tenha proferido, na sequência da relação sexual e quando se
juntou aos restantes membros do grupo, a frase que lhe é atribuída por
Ilda, a amiga íntima de Maria que a acompanhava naquela noite (e a única
do grupo que nos dias seguintes não a pressionou — pelo contrário — a
manter o silêncio e “não dizer nomes” às autoridades). Uma frase que, a
ter sido dita por Filipe, ilustraria na perfeição a ideia de
constrangimento subjacente ao crime: “Ela não queria, mas depois foi”.Para
a formação da respetiva convicção, os dois magistrados invocam o facto
de Maria, ao ser confrontada com os avanços de Filipe, não ter fugido
nem pedido ajuda, o que veem como indício de que terá afinal consentido.
Consideram também que as mensagens trocadas por ela, nos dias seguintes
— ainda antes de apresentar queixa, o que só sucederia cerca de uma
semana após os factos — com elementos do grupo “são dúbias quanto ao que
ocorreu”.Porque, lê-se no acórdão, “se, por um lado, nelas, várias
vezes, a Assistente menciona que disse que não à relação sexual, por
outro lado reporta que o ocorrido não é uma violação, o que pode
significar que não queria e disse que não, mas que depois, perante a
insistência do Arguido [Filipe] e o ambiente criado, assentiu e quis, ou
que não queria e não assentiu na relação sexual, mas que, quando mandou
as mensagens, não tinha ainda a noção de que o ocorrido era uma
violação porque o Arguido, como disse a própria Assistente, não foi
violento".Esta interpretação parece colidir com a conclusão a que os
magistrados chegaram — a de que não se provou que Maria terá
“sinalizado” que não queria que Filipe “lhe introduzisse o pénis na
vagina”. É que ou consideram que Maria não estava, nas mensagens em
causa, a relatar a verdade quando menciona ter dito não várias vezes, ou
acreditam que o disse mas acham que Filipe — mais velho, mais
experiente, mais forte — continuar ainda assim a “insistir” não
configura o “constrangimento” em causa no crime de violação. O qual,
recorde-se, ocorre quando a penetração é efetuada “contra a vontade
cognoscível da vítima”.A definição, acrescentada no tipo criminal há
apenas seis anos, visou alinhá-lo com as exigências da Convenção de
Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à
Violência Contra as Mulheres, ratificada por Portugal em 2013 e com
aplicação direta no nosso ordenamento jurídico), a qual prescreve que “o
consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da
vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias
envolventes”. Atender à “vontade livre da pessoa” é uma fundamental
alteração na forma de olhar para os crimes sexuais, nomeadamente quando
as vítimas são mulheres. Ao invés de, como sucedeu até há pouco na
própria redação da lei e sucede ainda (muito) na apreciação dos
tribunais, fazer incidir o julgamento na capacidade que as vítimas
tiveram ou não de se “opor”, “resistir”, “fugir” ou “pedir ajuda” (até
2015, a violação era entendida, na jurisprudência maioritária, como
emprego de violência “para vencer a resistência da vítima”, que “não
podia bastar-se a dizer não”), trata-se de focar no respeito ou
desrespeito pela liberdade do outro — ou outra.Como explicava em
2018 ao DN, a propósito da alteração do tipo criminal de violação, a
penalista Teresa Quintela de Brito, passou assim a existir a noção de
“consentimento não livre” — aquele em que “o processo de formação da
vontade da vítima foi viciado pela atuação (em regra complexa,
plurissignificativa e subtil) do agente, que se aproveitou da sua
própria posição de superioridade (anterior ou por ele criada), ou de uma
pré-existente situação de dependência ou vulnerabilidade da vítima”.“Eu não levo como violação [mas] forçado foi um pouco né”Logo
no início do processo, quando Filipe contesta, junto do Tribunal da
Relação, a medida de coação de prisão preventiva, o MP já tido chamado a
atenção para a necessidade de que o tipo criminal de violação seja lido
à luz da Convenção de Istambul. Na resposta ao recurso do arguido, no
qual este invocava, precisamente, o facto de Maria não ter pedido ajuda,
o MP escrevia: “Sobre Maria não impendia qualquer dever de pedir ajuda,
antes cabendo ao arguido atuar de acordo com a vontade não só
cognoscível, mas claramente expressa e manifestada daquela, não lhe
impondo a cópula vaginal forçada e violenta".Por outro lado,
lembrava ainda o MP nessa ocasião, Maria “não conhecia nem lhe era
exigível que conhecesse o valor rigoroso do consentimento para efeitos
penais”, pelo que ter dito, nas SMS referidas, que não via o ocorrido
como violação ou que tinha consentido, quando ainda não conseguira
“interpretar adequadamente a gravidade do que acabara de lhe acontecer
(…) e sem a perfeita consciência que o consentimento para beijos e
carícias não abrange o consentimento para a relação sexual de cópula”
tem “muito pouco ou mesmo nenhum” valor probatório.Dolorosamente
reveladoras do sofrimento e conflito emocional de Maria face ao
ocorrido, as ditas SMS estão em parte reproduzidas no voto de vencida de
Filomena Bernardo e no acórdão do Tribunal da Relação de junho de 2024
que manteve, por considerar existirem fortes indícios do cometimento de
violação, a prisão preventiva imposta a Filipe.“O médico disse ao
meu pai que isto foi forçado (…) eu disse ao meu pai que foi vontade dos
dois, mas eu também sei que disse não e ele insistiu. Meu pai quer
fazer queixa e eu pedi a meu pai a chorar que não queria ir com isto
para a frente nem queria dizer nomes”, diz Maria numa troca de mensagens
com Joana, uma das pessoas com quem saiu naquele sábado. “Isto só
porque tou a ser amiga de um homem que nunca falei na vida".Quando a
interlocutora lhe diz que esse homem (Filipe) garante que ela foi
“proativa” na relação sexual, Maria nega: “Népia, eu tava beijando ele e
eu tava dizendo que não”, “Daí ele se despiu todo”, “Eu queria tar com
ele”, “mas não queria fuder com ele e ele sabe que disse que não mas
depois também fui na onda… por isso a culpa não é toda do Filipe”.Mais
à frente, reforça: “Eu também quis! Só não queria fuder e depois ele
tirou-me a roupa... e foi o que foi. (…) Eu não levo isso como
violação!!! longe disso muito longe (…) forçado foi um pouco né”.“A vítima perfeita não existe”Para
ela, explicará depois, durante o julgamento, violação são “coisas
agressivas, seria muito violento, numa má” e ela tinha consentido nos
beijos e “por isso para si não foi violação”. Estas SMS de Maria,
que o tribunal de Angra do Heroísmo viu como “dúbias” têm, na
interpretação que delas fez em junho de 2024 o Tribunal da Relação de
Lisboa ao apreciar a medida de coação imposta a Filipe, uma tonalidade
muito diferente.No acórdão deste tribunal superior, do qual foi
relatora a desembargadora Sandra de Oliveira Pinto, lê-se: “Face a todas
estas trocas de mensagens (…), o que resulta muito claro é que a
própria ofendida se culpabilizou pelo facto de o arguido não ter sabido
controlar os seus impulsos perante a sua recusa, como se lhe não fosse
legítimo não querer manter cópula com ele".Tal atitude, reflete o
acórdão, “representa uma segunda vitimação, que nasce do preconceito,
ainda prevalecente em alguns setores da sociedade, e que,
verdadeiramente, nega à vítima a sua liberdade e autodeterminação sexual
(que é, afinal, o bem jurídico protegido pela incriminação)".Verberando
a argumentação do recurso de Filipe por partir do pressuposto “de que
todas as vítimas de violação (ou de agressão sexual, com ou sem cópula)
têm de imediato consciência de que foram vítimas de um crime e estão, de
imediato, dispostas a denunciar o respetivo agressor (e que, se não o
fazem, é porque o crime não aconteceu)”, o Tribunal da Relação diz não
identificar “incongruência ou inverosimilhança nas declarações prestadas
pela ofendida, que são (…) corroboradas pelos demais elementos de prova
disponíveis nos autos”.E adverte: “A ‘vítima perfeita’ não existe:
tudo o que se observa no modo como Maria se conduziu nos dias que se
seguiram à agressão é compreensível e congruente com as características
da própria, a sua faixa etária, o seu meio de vida e a pressão da
sociedade que a rodeia. Caberá ao sistema de justiça tentar não
contribuir para a persistência da respetiva vitimação".*https://www.dn.pt/sociedade/sexo-violento-deixou-jovem-de-16-anos-em-risco-de-vida-tribunal-no-viu-v...